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Numa dessas leituras de enterteinment que tenho feito, ocorreu-me saber que o infante português d. João, antes de ascender ao trono – como D. João V – desejou escolher para rainha, “por livre impulso do coração”, d. Filipa de Noronha, irmã do terceiro marquês de Cascais. A moça era reconhecida por sua inteligência, além de ser nobre, rica, bela – segundo o que consta – e sensível…

Ocorre que tais crônicas guardavam certa maledicência. Referia-se que a moça teria herdado não apenas a beleza e a nobreza, como também a sensibilidade de sua avó, d. Barbara Estephânia de Lara… Guardem o nome.

Primeiro vamos explicar a sutileza da maneira como a palavra “sensível” foi usada. Que sensibilidade era essa? Bom, num primeiro plano, uma sensibilidade real, provinda do bom uso de inteligência, memória, juízo, abstração e imaginação. A avó e a neta eram reconhecidas por tudo isso de bom.

Mas, num segundo plano, o emprego do termo referia, ao que se dizia, o interesse por …bruxaria.

Sim, porque d. Barbara Estephânia de Lara, a avó da moça amada pelo infante d. João, conhecida até hoje por sua imensa correspondência, obra do panteão da literatura portuguesa, havia sido indiciada num processo que escandalizou a toda a península ibérica.

A história remonta ao ano de 1647, quando foi aberto um processo, pela Santa Inquisição, que tinha por réu o frade Antônio Pimentel, acusado de feitiçaria. Do ponto de vista dos historiadores, trata-se de um testemunho importante sobre as práticas da magia na cultura popular portuguesa. O réu era um cristão-novo, nascido em Évora – cidade muito assombrada de Portugal, sempre temida pela bruxa de Évora e pelas profecias de São Cipriano, que ali morava. Na verdade, Évora era uma cidade cheia de bruxas, lobisomens, serpentes aladas, taurímacos com dentes de vampiro e mulheres sem cabeça. E, também, é a terra natal do famoso Bicho Papão.

O tal frade Antônio Pimentel, segundo consta do processo, era praticante de magias com símbolos cabalísticos e com a influência das figuras míticas e lendárias. Vivia referindo o selo de Salomão, bem como letras do alfabeto hebraico. O problema devia ser menos da ordem da bruxaria de que da ordem política e normativa, porque, como se sabe, a língua hebraica e toda a sua simbologia haviam sido proibidas pelas conversões forçadas de mais de cem anos antes. Cristão-novo, o réu pertencia à Ordem de São Bento de Avis. Era comum alguns conversos ingressarem em ordens religiosas para disfarçar a própria ancestralidade, bem como para dissimular a falta de crença no catolicismo.

Isto dito, onde entra d. Bárbara Estephânia de Lara?

Ela é a principal testemunha do processo. Isso porque havia solicitado, a Antônio Pimentel, um preparado mágico. Uma poção para que seu marido, o marquês de Cascais, importante figura do Reyno, fosse dissuadido de certas desconfianças que possuía em relação à fidelidade dela e que, por extensão, se afastasse de seus afetos por certas damas castelhanas.

Que babado, não?

E tudo isso foi assunto público, tema de sussurros na corte e de desaires nas vias públicas. O 1° marquês de Cascais chamava-se Álvaro Pires de Castro e tinha 57 anos durante a deflagração do processo. Além de marquês de Cascais, era 6° conde de Monsanto, membro do Conselho de Estado e do Conselho da Guerra de Portugal.

fronteiro-Mór do Reyno, coudel-Mór do Reyno, couteiro-Mór do Reyno, alcaide-Mór de Lisboa e senhor das vilas de Cascais, Lourinhã, Ançã, São Lourenço do Bairro, Monsanto, do castelo Mendo, comendador de São Martinho de Bornes, de Santa Maria de Pinhel, de Villa de Rey e de Penalva, embaixador de Portugal na corte de Luis XIV da França.

Sua esposa, d. Bárbara Estephânia, havia recebido a honra de ser dama da Rainha Isabel de Bourbon, princesa de Castela, esposa do rei Filipe IV de Espanha. Foi irmã do 6º conde da Castanheira. Quando pediu serviços ao bruxo, tinha 27 anos de idade.

E, tudo isto dito, surge outra personagem na história: d. Joana de Castro, a irmã do marquês de Cascais, comendadeira e abadessa do Mosteiro da Encarnação de São Bento de Avis. Tinha 50 anos de idade, no início do processo e foi ela quem denunciou o bruxo de Évora, o frade Antônio Pimentel.

Suas motivações ao fazer a denúncia? Aparentemente não gostava da nora, tantos anos mais nova de que irmão (e de que ela mesma), tão bonita e tão inteligente.

Algum dia transformo essa trama em romance – convenhamos que a história rende.

O resultado? O bruxo de Évora foi condenado pelo Tribunal do Santo Ofício. A marquesa de Cascais, d. Bárbara Estephânia, saiu da história chamuscada na sua honra, mas logo se recuperou e seria uma das mulheres mais influentes nas cortes ibéricas durante algumas décadas, ficando famosa pela inteligência e por suas cartas, sempre cheias de ironia e de informações preciosas. Nada ocorreu a ela, é claro, porque era apenas uma testemunha. O marquês de Cascais saiu do caso muito ressentido da exposição pública recebida, mas foi recompensado, por conta disso, com uma pensão do Estado vetusta. Afinal, era amigo d’El Rey. Sua irmã, a abadessa denunciante, a comendadeira e abadessa d. Joana aumentou sua fama de má. E ficou feliz com isso.

E, isto dito, retornemos à d. Filipa de Noronha, irmã do terceiro marquês de Cascais e por quem o futuro D. João V apaixonou-se.

Antonio Caetano de Souza, cronista português, escreveu algumas coisas a seu respeito. Descreveu sua cultura, inteligência e espirito. Falou, ainda, sobre seu sentimento de independência. Disse que era uma mulher “dos novos tempos”.

O infante d. João acabou perdidamente apaixonado por essa mulher incrível. Efez de tudo para se casar com ela. Filipa era sete anos mais velha que ele, mas isso a nada obstava. E era correspondido na sua paixão.

Apesar de tudo isso, havia os imperativos de Estado… os imperativos dinásticos, a dinâmica de d. João, príncipe herdeiro, com uma princesa de casa reinante. E havia o velho processo no qual a avó da moça havia sido testemunha…

E o Estado português condenou Filipa a tornar-se freira. Era uma maneira de esconder o problema. Tenho mais a contar, porque a história não para por aí – e, como sabem, leva a outra… Então continuo na semana que vem.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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