0

Henry Labouchère, diplomata inglês (apesar do nome), servia como adido da legação britânica em São Petersburgo, secretariando o embaixador, no começo do século XX. Certo dia atendeu, na sua função, um nobre russo todo pomposo e arrogante, que exigia ser recebido imediatamente pelo embaixador. O jovem diplomata disse-lhe:

– Sente-se nesta cadeira, por favor. Assim que possível o senhor será recebido.

O nobre não gostou da resposta:

– O senhor sabe com quem está falando?

E enunciou uma lista de seus títulos e cargos.

A resposta do jovem diplomata entrou para os anais da ironia diplomática:

– Então, por favor, sente-se em duas cadeiras. (Ribeiro, p. 201)

Acho que todos nós já encontramos por aí gente que precisa sentar em duas cadeiras, não é verdade?

A cidade de Belém, em verdade, é lugar onde abundam pessoas que precisam de duas cadeiras para, justamente, abundar.

O problema, de fundo, é o da vaidade. A imagem que ilustra este texto é uma alegoria da vaidade. O quadro, pintado por Pieter Claesz (1597-1661), chama-se ‘Natureza morta com vaidade, material de escrita, relógio e anêmona. Claesz foi um pintor flamengo que, como muitos outros, do seu tempo, pintaram alegorias sobre a vaidade. O crânio representa o destino inelutável de todos nós. A caneta de bico de pena representa a busca por respostas para o sentido da vida. O relógio e a vela sugerem que a vida está passando e que é efêmera. A anêmona, que é um tipo de flor, significa, ao mesmo tempo, a beleza e a fragilidade da vida.

E a tela, em seu conjunto, sugere que as vaidades da vida são inócuas, porque todos morrem, afinal. Memento mori, diz a expressão latina. Ou seja: “lembra que és mortal”. É o primeiro conselho da filosofia estóica a todos os vaidosos.

Bom, essa discussão sobre a vaidade e a presunção de importância me fazem lembrar de uma anedota sobre os argentinos que escutei, certa vez.

Iam caminhando pela rua um pai e seu filho, ambos argentinos.

E, de repente, o filho diz para o pai:

– Papá, cuando sea mayor quiero ser un hombre como tú.

O pai todo orgulhoso, muito envaidecido, pergunta:

– ¿Y por qué hijo? Para seres un hombre inteligente, elegante y hermoso, como yo?

E o filho responde:

– ¡Non, papá! Para tener hijos como yo.

De minha parte, observo quieto essas pessoas que precisam de duas cadeiras para sentarem-se. Quieto mas atento. Tomo notas. Transformo-os em personagens das histórias que conto aos meus amigos ou coloco nos meus contos.

Gosto, principalmente, desses que fingem modéstia. O ato de dissimular a própria vaidade por meio de encenações de modéstia é interessantíssimo. Até já dei uma aula como tema “Sociologia da falsa modéstia”, na qual discuti alguns casos observados empiricamente e outros retirados da literatura.

A falsa modéstia encena a humildade. Aliás, poderia descrevê-la como uma performance – mesmo porque ela exige, para ser convincente, a postura corporal e facial adequada. E há o seu texto, outra peça fundamental para dar veracidade à cena. Há suas interjeições, como “longe de mim…”, “não quero parecer… mas…”, “não está mais aqui quem falou…”, “om o perdão do trocadilho…” e o indefectível “com o perdão da falsa modéstia…”. É como se a falsa modéstia precisasse fazer um elogio da própria máscara.

Isso ocorre, provavelmente, porque a falsa modéstia possui um apelo narcisista: seu agente enunciador não consegue se impedir de, mesmo que discretamente, desvelar que a sua modéstia é falsa… Trata-se de uma ambiguidade civilizacional… Como disse Jean de La Bruyère, “a falsa modéstia é o último requinte da vaidade”…

Na verdade, a dinâmica cênica da falsa modéstia centra-se sobre a construção social da ambiguidade: a veracidade, em seu caso, não é parecer “modesto”, mas parecer ambíguo, deixando margens de conexão entre o modesto e o imodesto, a humildade e a vaidade, a coerência e a consequência…

E isso me lembra de uma frase de Millôr Fernandes sobre a humildade que mostra com todos esses sentimentos referidos possuem uma ambiguidade estrutural: “A humildade é uma espécie de orgulho que aposta no perdedor”.

Ou seja, a humildade também apronta das suas, também é performática, também possui a sua cênica. De resto, antes a falsa-modéstia – pelo menos ela é civilizada – do que a presunção de importância desbragada dos que precisam de duas cadeiras para sentarem-se.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

Alepa iça protagonismo amazônida parauara

Anterior

Acidentes no setor elétrico preocupam MPT PA-AP

Próximo

Você pode gostar

Comentários