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Um pálido feixe de luz bruxuleava  sobre o palco. Àquela altura, nas últimas folhas de calendário do século XX, Santarém boateava pela paróquia inteira da Calha Norte o reconhecimento mundial do talento artístico de seu ilustre filho, talvez nascido na mesopotâmia imaginária do Tapajós e do Surubiu.

Eu, sentada na primeira fileira de cadeiras, aguardava – no gargarejo –  o inicio do show. Quase afundando na poltrona, conspirava internamente, lembrando ter pago uma mísera meia entrada para o espetáculo: logo, logo virá uma autoridade pedir meu assento, ao mesmo tempo em que me mantinha fora do alvo e abaixo do radar dos organizadores do evento. Se aquele fosse meu dia de sorte…

O burburinho da plateia agitada cedia lentamente aos primeiros acordes tímidos, enquanto os dedos agilíssimos, quase onipresentes, acariciavam gostosamente as cordas do instrumento.

Daquela intimidade quase sensual entre o corpo e sua extensão, a música brotava fecunda, magnífica, ainda nas preliminares de um ensaio.

A nascente de harmonia e de ritmo brotava no encontro dos dedos do artista com as cordas  e desaguava no rio infinito de minha alma musófla, na medida exata em que o som inundava o recinto de uma sinestesia de cores e de sabores musicais.

Ainda afundada na poltrona da primeira fileira, clandestinamente ocupando um espaço que talvez não fosse meu, não posso recordar se piscava os olhos, ansiosa pela formalidade de início ‘do veras’ da performance do grande artista, com a curiosidade interiorana de quem ouviu falar de longe sobre o grande instrumentista de cordas.

O calor da sala fazia exalar a umidade das velhas paredes, que reverberavam, cúmplices, as notas de improviso virtuoso; talvez uma guarânia de entremeio a alguma batida cabocla, que o Bosco João poderia confundir facilmente com sua Granada de Espanha…

Batidas de leve no corpo da guitarra se alternavam com a dança sinuosa dos dedos magníficos sapateando  sobre as cordas, como se o batuque e o tilintar das notas procurassem, pela travessia dos tímpanos, invadir o corpo da plateia pelas Termópilas da alma: eu já estava, ainda no aquecer das cordas do violão, vencida como Leonidas.

Puff!! Alguém sentenciou dá plateia: foi embora a luz! Tonara que volte, lamentou meu vizinho de assento.

Enquanto a noite avançava para dentro das horas, já à altura das 20:30h, a organização do concerto de violão se apoquentava com o apagão energético: um episódio comum na contraditória Amazônia dos grandes rios!

20:30h, aproximadamente.

O vendedor de pipocas, que fazia ponto à frente da Casa da Cultura,  já se acomodava em um canto da sala com o carrinho fon, fon, emprestando o candeeiro à gás para iluminar uma parte da sala.

A escuridão e o calor já enfastiavam uma plateia exigente pelo cumprimento do planejado: o sebastiânico espetáculo em foro santareno do artista famoso que já se apresentava até na Alemanha.

A paz não se fazia; tampouco a luz…

Vamos fazer com velas, mesmo! Gritou um ‘caboco’ já enfezado com a demora para ‘a luz voltar’.

Vamos! responderam mais uns quatro.

Fiat lux! Alguém arranjou algumas caixas de velas de cera – dessas que se usam em velórios -e, de repente,  a casa de espetáculos se enchia de pequenos pontos luminosos, como pirilampos namorados, em noite sem lua.

Os telefones celulares ainda não haviam se popularizado naqueles idos dos anos 90 para 2000:  sorte de quem pode testemunhar, antes do advento das telas indiscretas, a poesia daquele momento.

Desta forma pitoresca ocorreu o namoro gostoso, devotado, íntimo e eterno entre Sebastião e as cordas, naquele espetáculo quase frustrado pela formalidade da energia elétrica interrompida.

Para mim, o ensaio prévio ali, no escuro, encenado entre o homem e sua viola, sobre um banquinho tímido de madeira, na ribalta de um pálido feixe de luz, representava o maior espetáculo das cordas da terra.

Em algum dos últimos dias destes, no olho do furacão de uma pandemia famigerada, Sebastião, Tapajós por alcunha e escolha, partiu para a eterna margem.

Algumas linhas pobres para compartilhar memórias do dia em que, contrarregra do inusitado, acendi velas para ele.

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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