“A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto…” – Foi assim que os portugueses nos encontraram por aqui, já se vão 523 anos, segundo o relato que Pero Vaz de Caminha encaminhou à Sua Majestade, o Rei Dom Manuel, para dar-lhe notícia do descobrimento do Brasil.
Cinco séculos se passaram, e em nossa grande maioria já não andamos nus, a mostrar genitálias ao léu, e, diferentemente do que relatou o escrivão da frota cabralina, já conseguimos nos comunicar com os descobridores, unidos que somos pela mesma língua, ainda que cada margem do Atlântico guarde e cultue sensíveis particularidades na gramática, nos significados e, sobretudo, na oralidade, com sotaques tão distintos que por vezes tornam difícil a compreensão do interlocutor.
Cinco séculos ficaram para trás e nossos irmãos europeus já não são os navegadores que foram, já não se tem notícias das suas naus a singrar os oceanos da terra, instalando colônias em quantos continentes chegaram, movidos pela indômita bravura que desde os primórdios da humanidade leva os homens ao mar.
Urge reconhecer, contudo, que os portugueses seguem promovendo grandes navegações, aportando com força e firmeza nos quatro cantos do mundo, desta feita traduzidos para mais de trinta e cinco idiomas em meia centena de países. Se a todos esses destinos já não chegam as caravelas que partiam do Tejo, a eles chega em volume e relevância crescentes a literatura contemporânea lusitana.
É nela que proponho navegarmos, para quem sabe redescobrir um pouco do povo que nos revelou ao mundo. O material é fartíssimo, de alta qualidade, e propicia um embevecimento que por si só justifica a aventura. A partir do Prêmio Nobel merecidamente concedido a José Saramago, em 1998, o primeiro e único atribuído a um escritor de língua portuguesa até o momento (injustiça que há muito grita por reparação), as letras portuguesas ganharam destaque, abriram portas e lançaram âncoras em muitas paragens.
E se conquistaram tantas terras e tantos admiradores, por certo há talento e virtuosismo a sustentar estes feitos, considerando-se que o mercado editorial costuma ser exigente e criterioso, atributos que não se limitam aos nomes que há muito atingiram proporção mundial, como é o caso do galardoado pela Academia Sueca ou de renomados como Almeida Garret, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e, mais recentemente, Sophia de Mello Breyner Andresen e António Lobo Antunes.
Muito ao contrário, o cenário atual é fértil e nos permite encontrar sensibilidades extremamente profundas e líricas, narrativas fortes e maravilhosamente criativas, estilos dos mais variados.
Veja-se, por exemplo, a delicadeza infinita de Valter Hugo Mãe, autor de numerosos e vigorosos livros dos quais destaco A máquina de fazer espanhóis, As doenças do Brasil e A desumanização – “Disse-lhe que não aceitava mais ser criança. As crianças não sepultam filhos. Quem sepulta um filho não tem idade. Está para lá das idades, para lá dos tempos, tem uma posse do mundo que independe de todas as limitações. A intensidade de quem sepulta um filho é semelhante à das forças inaugurais ou terminais. Pode fazer e desfazer tudo. Legitimamente lhe é conferido o poder moral de começar ou de acabar tudo.”
De igual encanto o trabalho de Miguel Sousa Tavares no inesquecível Equador, nos deliciosos Madrugada suja e No teu deserto, e no espetacular Último olhar – “Sabes filha? Uma das coisas mais tristes de envelhecer é quando morrem os amigos e temos de apagar os nomes deles no telemóvel. Aí, mais do que no próprio enterro, é que percebemos mesmo que morreram: que nunca mais nos vão telefonar.”
No mesmo mar de almirante navega a inventividade de Afonso Cruz, em obras como Nem todas as baleias voam, Para onde vão os guarda-chuvas, A boneca de Kokoschka e Jesus Cristo bebia cerveja – “Contudo, elaborava grandes discursos, sermões que julgava engenhosos. Faltava-lhe, tantas vezes, o gênio, mas também lhe faltava o gênio para o admitir. São dois gênios que faltam quase sempre em conjunto.”
E o que dizer de José Luís Peixoto, dono da rara capacidade de misturar prosa e poesia, um dos expoentes atuais do realismo fantástico que destacou o colombiano Gabriel Garcia Marquez, outro agraciado com o Nobel de Literatura. Peixoto escreveu livros que obrigatoriamente devem estar em nossas estantes, ou sobre nossas cabeceiras, mesmo depois de lidos, como é o caso de Morreste-me, Uma casa na escuridão, Cemitério de Pianos, Galveias, Almoço de domingo – “Que rosto tem uma pessoa? No fim da vida, entre todos os rostos que teve, qual é o rosto que realmente a representa? Será que o último rosto, por ter sobrevivido a todos os outros, é o mais válido? – e Nenhum olhar, livro que lhe rendeu o Prêmio Saramago em 2001 – “Numa dessas vezes, ouvi a voz que está fechada dentro de uma arca dizer: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade, talvez os homens não sejam feitos de escuridão, talvez as certezas sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as certezas que possuem.”
Esses são alguns dos desafios a que podemos nos lançar. Outros mares há por navegar sem risco de enfrentar procelas: Gonçalo M. Tavares, João Tordo, Bruno Vieira Amaral, Lídia Jorge e muitos mais. Portugal vive uma bela safra de escritores e escritoras, dignos todos das melhores castas que também por lá são produzidas, da Península de Setúbal ao Douro, do Alentejo ao Dão, numa profusão de tesouros da literatura e da enologia, uma combinação que o país compreende muito bem.
Por fim, se o propósito é convencer de vez o caríssimo marinheiro a embarcar, jamais poderia omitir a fina especiaria que há na avassaladora poesia de Maria do Rosário Pedreira, talvez a maior poetisa portuguesa da atualidade, autora de A casa e o cheiro dos livros, O canto do vento nos ciprestes e O meu corpo humano. Do primeiro extraio a pérola com que encerro esta crônica:
“São horas de voltar. Tu já não vens, e a espera
gastou a luz de mais um dia. Agora, quem passar
trará um corpo incerto dentro do nevoeiro,
mas terá outro nome e outro perfume. Eu volto
à casa onde contigo se demorou o verão e arrumo
os livros, escondo as cartas, viro os retratos
para a mesa. Sei que o tempo se magoou de nós,
sei que não voltas, e ouço dizer que as aves
partem sempre assim, subitamente. Outras virão
em março, apago as luzes do quarto, nunca as mesmas.”
Velas ao alto enquanto o vento é robusto e valente. No balé das ondas desse mar literário o que importa é estar à bordo de um livro bom, que nos liberte das amarras do cais, afinal, como escreveu Fernando Pessoa: “O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar.”
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