A cidade respira e sopra no rosto de quem abre a janela a brisa úmida da recente madrugada que acordou. São 5:23 da manhã. Bem-te-vis, garças e pombos voam em direção à luz. O café tem cheiro de silêncio. O rio passeia nos barcos parados da pedra do Ver-o-Peso, numa cidade ribeira de futuro passado.
Cada pedra na calçada e cada igreja refaz o tempo presente da cidade amorosamente maltratada em cada esquina de teias. Cidade Ariadne, Deusa dos fios; seus minaretes despontam na alegoria emaranhada de postes esquecidos.
Resistente cidade amada na utopia. Resiste como heroína entre mangueiras centenárias.
O trânsito reclama seu lugar de morada enquanto bocas de lobos murmuram poesias, beijando pneus.
São 7:30 da manhã e o si bemol do freio agudo faz o ônibus espirrar quando para. Sobem pessoas e sonhos coletivos. Descem encontros solitários e vontades.
A parada sem banco tem pressa. Gente no meio fio na aponta dos pés e o braço estendido, se procuram no destino do letreiro. A cidade segue passando por todos e ninguém nota a escultura original que restou no alto do casario. É uma ninfa com uma das mãos apontando para o céu, como se implorasse por seu Deus. Placas e painéis escondem a Belle Époque. Placas e painéis destroem histórias que resistem no azul dos azulejos.
Já são 9:25 e o calor já encontrou há muito cada um que a essa altura já tem seu próprio sol. Já é possível escutar o coral das maquitas a divorciar lajotas.
O alto-falante do carro de publicidade anuncia promoções no estilo outlet e os guardadores com flanelas gladiadoras já esperam seus leões.
Um semáforo rege os minutos do vendedor de aromas em frente ao arranha céu.
As 10:10 os ipês da avenida soltam suas flores na cidade para ninguém. Canteiros, cantores que cantam a canção do nunca mais.
Às 11:40 soa a campa de uma escola e o som de maritacas se confundem com vozes de crianças a gritarem suas infâncias. A cidade segue sem temer a dor de ser tão bela e insistentemente linda.
Não há sombra na cidade. O meio do dia é um fogo iluminado nos olhos que se amiúdam para ver.
Não há sombra que não seja iluminada na cidade amada. Casa do Pão, lugar de morar e ser morada na morada do alimento e nome seu.
Pescadas, tambaquis e churrasquinhos se juntam ao açaí, esse ouro negro. Filha de Zeus e Mnemósine, Euterpe, deusa da música e dos sentidos mais puros que nomeia o alimento ribeirinho; Euterpe Olerácea, açaí, fruta que chora dos tupis, alimento amado da cidade santa, pão bacáceo de felicidade roxa na mesa de quem sonha ao meio-dia.
De repente a cor da tarde muda e o calor transforma o zéfiro. A chuva branca e sem aviso cai como lágrimas de Deus, e assim cantando suas trovas em trovões a chuva inunda a rua. Chinelas e sapatos passam a calçar as mãos dos transeuntes que recebem bençãos e lava-pés.
O relógio marca 15:10 horas e não há sombra, nem sol, nem mais a chuva. Águas caindo das biqueiras se misturam ao som dos pneus na água do asfalto que exala o petricor. Pupunhas e cafés douram de sabor e fazem chover no céu da boca.
A chuva tem cheiro de infância. Uma brisa da Baia do Guajará traz o som dos barcos à motor. Cidade tocada na sinfonia em pô-pô-pô.
Sinhá Pureza aprendeu com Pinduca, Verequete, Chico Braga, Lucindo, Damasceno, Waldemar, Chico Sena, Tó Teixeira, Aldo Sena, Rafael Lima, Rui Baldez, Ronaldo Silva, Nilson Chaves, Paes Loureiro, Dalcídio, e tantos, tantos, tantos outros a dançar o carimbó da cidade que roda e canta
18:35 horas.
Não se junta uma noite quando cai.
Agasalha-se com ela.
Entre novelas, motoboys e entregas constroem suas torres de pizzas no lugar dos tacacás. Bebida santa e escassa na cuia do tempo e no tucupi da Eliete.
A cidade começa a se apagar nas casas as 21:00 ao som de aparelhagens que esquecem que os ouvidos não piscam.
Às 23 Cidade amada se recolhe na rede de anáguas; lugar de nascimento de um Cristo esperado pelo último garçom de um restaurante. Belém, cidade amada.
Comentários