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Hoje, ouvia a rádio que Marcio, meu companheiro, fez para o Caetano. Ouvindo a música do Claudinho e Bochecha, do avião sem asa, fogueira sem brasa, lembrei de um verso que a gente escrevia quando era pirralha e que vai entregar minha idade. Era mais ou menos assim: “Imagina o ‘É o tchan’, sem a Carla Perez; o Timbalada, sem o Xexéu; a Banda Eva, sem a Ivete, agora imagine eu, em você”. Eu acho que tinha meus 9 anos, hoje idade da minha filha, e esse era um verso trocado entre melhores amigas, com a promessa de eternidade. Mas o melhor de tudo é que todas as parcerias citadas acima, inclusive a minha amizade, acabaram por algum motivo, e também, simplesmente, porque as coisas acabam.

O mais eterno que se pode ter é a arte, talvez, penso cá com meus botões. Tropeços, brigas, interesses que divergem, novos sonhos, outros projetos, novos encantamentos ou a morte, como no caso do Claudinho e Bochecha. A vida tem seus ciclos. Não quer dizer que pessoas não permaneçam em memórias, em ensinamentos e até em amor nas lembranças e aprendizados, mas mudam a forma de existir na vida do outro e, em alguns casos, acabam radicalmente mesmo pelo ódio ou indiferença. Além disso, às vezes, algumas uniões são tão fantásticas que quando acontecem é difícil imaginar que possam romper, outras vezes a separação faz ver que o brilho era mais de uma pessoa do que do conjunto em si, mas ainda assim formações prosseguem com suas músicas e enredos que também tem seu valor, talvez até mais maduros que antes e sem a necessidade de tanta lantejoula.

Entender que tudo tem fim vai contra a lógica colonial que nos subjetivamos, cujo “pra sempre” deve ser sustentado, mesmo que as custas de violências e sacrifícios, geralmente das mulheres. Alias, uma lógica que faz toda uma engrenagem econômica, de exploração e de poder se sustentar. Desativar em nós algumas crenças pode nos ajudar a ficarmos mais fortes e saudáveis, ou mais próximas do bem-viver. Há estudos, por sinal, que dizem que quanto menos romantização (do amor, da maternidade), menos sofrimento. Sofremos pela idealização de um “pra sempre” que sequer existe, às vezes mais forte que a própria relação, e esquecemos que depois do “sim” vem todo o resto. Sofremos por achar que pessoas nos devem a vida, que têm que abdicar das suas para caber nos nossos projetos – e se você é homem branco, isso ainda faz mais sentido.  E quanto mais submetidas a lógica do “pra sempre”, mais a sensação de fracasso por não estar no ideal culturalmente imposto.

Lucra-se com as insatisfações femininas, já que mulheres se afastam de si para tentar se encaixar nessa coerência toda aí, ficando reféns dessa eterna busca, custe o que custar. Uma busca bem desigual, diga-se de passagem, e adoecedora, desarticulando, até mesmo, os laços de amizade que poderiam ser possíveis. Se olharmos para natureza ao nosso redor e nos vermos como parte dela, talvez entendamos que nossa própria vida é um ciclo, muitas vezes com mortes aceleradas pela indústria e lógica do capital – que é misógina e, sobretudo, racista, logo matando mais certos corpos que outros. Compreender que estamos ligados a este sistema e que amarras nos acorrentam para sofrimentos de não saber lidar com a transitoriedade da vida também é um exercício para novas artesanias de si, como tanto problematiza Geni Nunes, uma militante indígena que está em doutoramento. Se temos inconsciente a dificuldade de lidar com a morte e se facilmente nos amparamos no narcisismo constituinte de quem somos, a cultura colonial brinca com isso para enriquecer e manter desigualdades tão violentas.

Olhemos para outros povos e a forma de lidarem com relações e finitudes. Lembremos que não somos centro do mundo e que temos fim, como todo o mais. Inclusive, nossas relações mais caras que podem acabar ou serem reinventadas, mas nunca do mesmo ponto de partida: o banho do rio nunca é igual. Pode até ser melhor ou pior, mas nunca igual. Tal também como o amor, com suas várias camadas, como o nascer e o pôr-do-sol. Eles que sempre têm uma surpresa, um novo tom, um novo pássaro formando nova paisagem e encantamentos, às vezes, inclusive ocorrendo escondidos porque é hora da chuva ou da tempestade. Respeitemos os fins, os ciclos, a beleza de se viver o que tem de ser vivido, respirando fundo para o que a vida traz e que nem sempre é fácil, afinal a vida tem suas exigências, mas sobretudo desativando nossos colonialismos. Há como viver sob novas artesanias.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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