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A crônica é, por certo, um dos gêneros mais sensíveis da literatura, um dos mais suscetíveis ao momento, dos mais afeitos à emoção que irrompe descompromissada, sem explicação, justificativa ou propósito. Não é incomum que seja pensada, planejada e rascunhada numa direção mas acabe caminhando em outra totalmente divergente. A crônica, enfim, é livre, autônoma, independente, e se assim não fosse não seria crônica, não seria emoção, não seria o retrato autêntico de um momento especial, por vezes efêmero, em outras perene.

Sentei e comecei a escrever sobre a Feira Literária de Paracatu, em Minas Gerais, mais especificamente sobre o belíssimo encontro de Mia Couto, talvez o maior nome da literatura lusófona moçambicana, romancista, cronista e poeta de raro talento, com Itamar Vieira Junior, novidade pujante das letras nacionais, fenômeno de talento, aceitação e vendagem.

Não estive em Paracatu, infelizmente, mas acompanhei on line esse bem aventurado encontro, e sobre ele quis me debruçar, encantado que estava com o que havia assistido pelo You Tube, notadamente com a doçura inebriante e ilimitada da Mia Couto a dizer que a razão da sua escrita repousa na busca da possibilidade de contar uma história, ou melhor, de seguir contando as histórias que, em criança, ouvia o pai replicar e a mãe aumentar, inovar, exagerar e encantar.

Andava eu por um trecho muito particular, discorrendo sobre aquilo que Mia dissera acerca de seu pai, um poeta que, ao “desvalorizar a realidade” o ensinara a buscar um sentido mais profundo para os fatos da vida; e sobre sua mãe, uma verdadeira artista do faz de conta, capaz de contar o mesmo fato em cinco diferentes versões para cinco diferentes interlocutores.

Fato é que eu tinha material farto e, por isso mesmo, acreditei que iria longe. 

O que não sabia, não poderia saber e nem esperava, é que o acaso fosse tão bem sucedido ao demonstrar sua força, que o texto pudesse enveredar sozinho por terrenos da sua própria predileção, ignorando sem cerimônia o planejamento que o antecedera. Num breve intervalo, ao acessar o celular para checar as mensagens, replicando a paranoia moderna que nos escraviza e submete, dei de encontro a um maravilhoso, sincero e eloquente testemunho de amor, e aí a rendição foi inevitável.

Atualizando o Instagram encontrei o lamento emocionado de Bráulio Bessa, o réquiem simples, singelo e apaixonado que o poeta e cordelista cearense dedicara a Tião, o cão que o acompanhava desde 2015 e que havia acabado de falecer.  

Com a delicadeza que lhe é peculiar, imune ao rebuscamento que enche de floreios supérfluos as mais belas e legítimas declarações de amor, Bráulio escreveu e declamou o poema que peço vênia para transcrever:

“Um cachorro não se importa com o valor do seu salário, não liga pra sua roupa, não tira extrato bancário, não sabe o que é dinheiro, viagens pro estrangeiro, nem quer morar em mansão. Ele só quer seu carinho e quem sabe um cantinho dentro do coração. Uma vida que é tão breve, por isso talvez a pressa, a urgência de amar já que amar é o que interessa. Se doar sem querer troco, ser feliz mesmo com pouco, e a humanidade sofrendo, mesmo assim não compreende, peleja mas não aprende, o que um cão nasce sabendo. Que o amor, meu povo, o amor tem quatro letras e por certo quatro patas, não diferencia ouro ou um pedaço de lata, não fala, não sabe ler, mas diz tudo pra você com o poder de um olhar, tão puro e tão leal, tem o dom especial de sempre nos perdoar. Eu nunca vou entender a tamanha pretensão de um homem que se diz mais sabido que um cão. Em nossa sociedade, infestada de vaidade e sentimentos banais, pro homem poder crescer, precisaria nascer igualzinho aos animais.”

De imediato compreendi que não seria capaz de produzir algo mais bonito ou mais significativo, crônica alguma que fosse capaz de suplantar a solenidade triste que havia na partida daquele cão, e por isso mesmo, resignado e embevecido, abandonei Paracatu, Mia Couto, Itamar Vieira Junior e tudo o mais que não fosse homenagem póstuma ao Tião.

Um cão nos leva sempre ao que temos de melhor em nós mesmos, habita sempre nossas melhores memórias, pisa e repisa incessantemente o terreno mais positivamente fértil que somos capazes de preparar. Um cão é semeadura e colheita; é lição de amor incondicionado, perdão constante, nobreza de princípios que o homem não é capaz de assimilar, copiar e levar a efeito.

Num outro dia talvez retome o texto que havia rascunhado antes de encontrar Bráulio e Tião, ou talvez não. Talvez seja melhor dar tempo ao tempo, e deixar que a crônica delibere a respeito com a autonomia que lhe reconheço. Por enquanto abraço o poeta e sua família, pranteio a partida do Tião e por meio dela revivo tudo o que me proporcionaram os cães que tive ao longo da vida.

Tião os trouxe de volta, pôs-me a chamá-los por seus nomes, pôs-me a imaginar que ainda correm em direção a mim quando chamo por eles. 

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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