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Confeccionadas a partir do fruto da cuieira (Crescentia cujete), tingido com pigmento natural para maior durabilidade e ornamentado à mão, de modo totalmente artesanal e sustentável, as cuias de Santarém do Pará podem ser apreciadas em importantes coleções, recolhidas durante as expedições científicas dos séculos XVIII e XIX na região do Baixo Amazonas. No Museu da Universidade de Coimbra e na Academia de Ciências de Lisboa, em Portugal, estão as recolhidas por Alexandre Rodrigues Ferreira, que são tingidas e decoradas com cores vistosas. No Acervo Mário de Andrade, do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, estão as cuias laqueadas coletadas pelo pesquisador. No Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, exemplares ornados com grafismos florais e símbolos comemorativos à República fazem parte da Coleção População Civilizada. No Museu Nacional, no Rio de Janeiro, as coleções Heloísa Alberto Torres, Luiz Castro Faria e Gastão Cruls incluem cuias tingidas com cumatê (casca de uma árvore) e ornamentadas com flores, e também peças decoradas com paisagens pintadas à tinta.

Até hoje, as cuias pintadas continuam sendo produzidas de acordo com as mesmas técnicas registradas no século XVIII. Mulheres ribeirinhas, principalmente nas áreas de várzea do rio Amazonas, fazem-nas em grandes quantidades para vender a revendedores, lojistas e consumidores diretos. Santarém concentra a maior parte da produção. O tradicional modo de fazer cuias na região tem um longo processo de manipulação de recursos naturais, em especial a casca do cumatê e, evidentemente, a própria cuia. As etapas de trabalho são minuciosas: retirada dos frutos (arredondados, ovalados, compridos, grandes, pequenos, de vários formatos), corte em duas metades, limpeza e polimento de cada parte, tingimento com pigmentos naturais (opcional, dependendo do uso destinado à peça), lavagem e ornamentação com grafismos produzidos por incisões (opcional). Esse fazer é dominado e praticado por mulheres, constituindo até hoje, assim como observou Ferreira em 1789, um ofício exclusivamente feminino.

As cuias pintadas com tintas destinam-se principalmente ao serviço de alimentos, a finalidades decorativas e ao mercado turístico de souvenires, mas ao longo do século XX tornaram-se tão emblemáticas do Pará quanto as cuias bordadas. Na primeira década do século XXI a prática das incisões ganhou novo impulso em Santarém, a partir do fomento à produção de cuias na região do Aritapera, por uma associação de artesãs locais, moradoras de cinco comunidades ribeirinhas: Cabeça d’Onça, Surubiú Açu, Carapanatuba, Enseada do Aritapera e Centro do Aritapera. A difusão de antigos padrões iconográficos de cuias, o estímulo à ornamentação das peças e o favorecimento de sua comercialização em diferentes circuitos de mercado contribuíram para a rememoração e a prática dos bordados nas cuias, bem como para a criação de novos padrões ornamentais: uns inspirados na cerâmica tapajônica, outros na fauna amazônica e outros, ainda, mesclando diferentes referências.

A cuia é um item muito presente na gastronomia parauara, tradicionalmente utilizada para servir o tacacá. Ela também pode ser utilizada para o consumo de outros caldos, sopas e cremes quentes ou frios. Sua superfície tingida com cumatê (tintura extraída da casca do cumatezeiro) ajuda a manter a higiene e a conservação do produto.

O Modo de Fazer Cuias do Baixo Amazonas recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro e foi inscrito no Livro de Registro dos Saberes em 2015. A prática artesanal de fazer cuias, desenvolvida entre comunidades indígenas da região há mais de dois séculos, agregou novos elementos e significados ao longo dos tempos.

Essa expressão cultural de longa continuidade histórica se encontra em constante processo de reelaboração. As populações ribeirinhas locais usam as cuias em atividades variadas e rotineiras: pegar água do rio, tomar banho, cozinhar, consumir líquidos e outros alimentos, tirar água da canoa, decorar as paredes das casas como vasos de plantas, lavar roupa, guardar apetrechos de trabalho, torrar farinha, criar mudas de plantas, alimentar animais e, também, servem como urinóis, enfeites, brinquedos  e até como fruteiras, copos, jarras, vasos, travessas, braceletes, farinheiras e petisqueiras, entre uma infinidade de outros objetos.

Ricamente ornamentadas com os bordados ou simplesmente pretas ou pitingas (sem pigmentação), as cuias integram uma classe de objetos muito presente na vida dos habitantes da região amazônica. Nas cidades as cuias pintadas aparecem no serviço de alimentos, em lojas de artigos religiosos, como objetos decorativos, ímãs de geladeira e acessórios de moda feminina como bolsas, brincos, pingentes e braceletes, mas, acima de tudo, são indispensáveis nas bancas de tacacá.

Gaspar de Carvajal, frei espanhol que acompanhou Francisco Orellana em viagem pelo rio Amazonas em 1541 e 1542, teria sido o primeiro a escrever sobre as cuias bordadas, observando nelas “a presença de padrões fitomórficos anteriores à presença das missões, que se estabeleceriam na região quase um século depois” (Gennari, 2011, p. 55). Sua observação, conforme alerta a etnóloga Thekla Hartmann, é feita “depois de deixar a foz do rio Tapajós e antes de alcançar o arquipélago do Marajó, ou seja… na região onde mais tarde surgiriam Santarém e Monte Alegre” (Hartmann, 1988, p. 297).

As cuias servem para mil e duas utilidades mas seu uso e conservação requer cuidados. Elas não devem ser levadas ao fogo ou forno de micro-ondas. Para lavagem, é melhorusar esponja, água e sabão, nunca abrasivos.

Na comunidade de Aritapera, área de várzea distante a uma hora e meia de voadeira partindo de Santarém, mulheres de cinco comunidades ribeirinhas mantêm a secular tradição de fazer cuias diferentes daquelas conhecidas por servir o tacacá. As mulheres da Associação das Mulheres Ribeirinhas de Santarém (Asarisan) usam a escama do pirarucu para lixar as bordas, a tinta é extraída de uma árvore chamada cumatê e o pincel é nada mais que uma pena de galinha. O resultado é surpreendente e especial.

O artesanato envolve conhecimento, técnicas e práticas que são repassadas por gerações, e essas mulheres acumulam enorme saber sobre o uso dos recursos naturais da região, além de muita habilidade prática. A cuia é um produto cultural lindo que mais pessoas devem conhecer, valorizar e reconhecer seu valor.

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