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Pode entrar, a casa é sua! Respondeu de dentro uma velha senhora sem saber quem estava ali. Assim continuava ao largo de seus oitenta e oito anos, a receber quem ela ouvia bater à sua porta. Não importava quem, embora o perigo dos mal-intencionados pudesse pôr em risco a generosidade e a delicadeza daquela velha mulher. Mas, parecia que o lugar por ela habitado, possuía uma espécie de escudo amoroso protetor; uma verdadeira blindagem positiva de delicadeza e força que tornava aquele lugar impenetrável para qualquer corrente do mal.

Separava os grãos de feijão como se fossem filhos seus espalhados sobre a mesa coberta com a toalha plástica de flores há muito desbotadas principalmente na frente do lugar em que sentava. O guardanapo feito de saca de trigo era branco, de tão usado e lavado, parecia um veludo e suas unhas tinham restos de esmalte vermelho “Paris”, sua cor predileta. Seus olhos eram de um amarelo brilhante tão intensos que o halo esbranquiçado de sua íris os fazia parecer dois planetas com anéis. Sem saber às vezes onde colocara seus óculos bifocais, ao falar com alguém precisava apertar seus olhinhos os incentivando a enxergar. 

– Pode entrar a casa é sua! (dizia a senhora)

Entravam pela porta vizinhos que pediam favores e ela atendia sempre; vendedores de enciclopédias, vendedores de vasculhos, motoristas de ônibus gente simples e amorosa que batia à sua porta para tomar café com pão e a benção.

Até o “fura-dedo”, servidor público que passava de porta em porta, disse certa vez que os coletores de sangue da “saúde” como ele, disputavam quem ia atender a rua a qual a senhorinha morava, só para tecer breves conversas e comer “engorda marido” com café preto.

Ao mesmo tempo que parecia perigoso, era curioso ver que a primeira atitude do dia daquela velha senhora era abrir as portas de sua casa. Casa que por sinal nunca foi materialmente dela pois viveu sempre de aluguel. Seu sonho era ter uma casa para chamar de sua. Mas, o que é ter uma casa? São somente paredes, tijolos, colunas telhados? Materialmente uma casa é feita disso, porém a casa somente existe se dentro dela existir vida e a vida estava ali nos olhinhos amarelo-brilhante daquela velha senhora e em tudo que lhe rodeava.

Seu gato e seu cachorro não miavam nem latiam quase pois por instinto sabiam que receberiam de suas enrugadas mãos um bocado de alguma coisa em intervalos certos e já sabidos por eles.

Certa ocasião, contou uma vizinha, que bateu à sua porta e não obteve resposta. Desconfiada ela entrou pela sala, viu sua cadeira de balanço toda em “vime”, com a almofada no assento, parada ali na sala sem ninguém. Somente o Cristo no prato côncavo na parede a observava, uma vez que a cada passo o Cristo a seguia com seu olhar divino, graças a uma ilusão de ótica provocada pela concavidade proposital do prato. Ou não! (?). A vizinha continuou a adentrar naquela casa e seguiu pelo corredor que dava acesso à três quartos onde uma passadeira vermelha, presa com taxas em suas extremidades oferecia um singelo grau de nobreza a quem a pisava, para atingir uma porta com vidros roxos, vermelhos, âmbar e azul, dispostos geometricamente naquele vitral, da metade para cima da porta de acesso à sala de jantar.

Nada nem ninguém respondia. O fato começou a perturbar e afligir o coração da vizinha cuja real intenção era conversar sobre seus problemas e de quebra pedir três ovos para colocá-los na vasilha vazia que intencionalmente carregava. Mais uma vez a vizinha falou em voz alta: 

– Ô de casa! Vizinha!

Sem resposta nenhuma a vizinha visitante pensou até em ligar para algum dos filhos dela pois a casa estava aberta, tudo estava intacto e a Senhorinha não estava lá.

Logo que pôde, se dirigiu até a cozinha, guiada pelo cheiro que exalava das panelas. As panelas no fogo colocaram ainda mais mistério na ausência da mulher. Pensou a vizinha – Teria ela ido até a taberna sozinha comprar cheiro verde ou alguma especiaria e deixou as panelas no fogo? Mas como ela sairia sozinha? Tomada pela dúvida e pela aflição da ausência daquela senhora naquela casa deserta, a vizinha quase desmaia de susto quando um gato desceu da prateleira à sua frente e correu em direção ao quintal.

A vizinha trêmula e curiosa, considerando que o medo e a curiosidade são primos na existência, tirou vagarosamente as sonoras sandálias que usava, como quem quisesse ao mesmo tempo não fazer barulho e se preparar para correr. 

Foi então que de repente, uma cena inusitada se iluminou à sua frente. A Senhora estava sentada ao pé da goiabeira; seis galinhas, um peru, um jaboti e o cachorro estavam parados na sua frente aguardando pacientemente cada um sua comida e seu afago. A cena lembrava São Francisco de Assis. 

Dante Alighieri considerava São Francisco como “Uma luz que brilhou sobre o mundo”. Inúmeras representações artísticas retratam a fé e a piedade de São Francisco, considerada uma das maiores figuras do cristianismo, ele chamava todos de irmãos e sempre protegeu e considerou os animais como seres que merecem a terra e a vida como todos os seres indistintamente. 

Naquele cenário franciscano a velha senhora ouvia o coração daqueles seres à sua frente como se com eles conversasse maravilhas sobre a existência divina e a dádiva da vida.

A vizinha, enlevada pela cena tão profundamente simples e repleta de significados, parou e sem que ela percebesse voltou mansamente na ponta dos pés, com suas sandálias em sua mão. Conforme se afastava via a velha senhora acariciar um a um os animais naquele pequeno quintal, todos numa hipnose de amor e paz que preenchia cada espaço daquele local.

A vizinha voltou sem dizer nada para não atrapalhar aquele momento divino de simples bondade.

Seguiu pelo corredor, chegou à sala onde Cristo ainda lhe olhava.

 O olhar de Jesus Cristo no prato pendurado na parede, a seguiu, até a vizinha comovida pelo cenário de amor e simplicidade, encostar delicadamente a porta. 

Salomão Habib
Salomão Habib é violonista, compositor, concertista, palestrante, escritor, pesquisador, professor e contador de histórias. Membro da Academia Paraense de Letras, tem seis livros publicados. É o maior pesquisador da obra e vida de Tó Teixeira e tem 8 DVDs e 46 CDs gravados, um na Alemanha. Já se apresentou na Argentina, Portugal, Cuba, Venezuela, Bélgica, Suíça, Itália e Alemanha. É autor de mais de 450 peças musicais, idealizador e coordenador do projeto Cantarolar, reconhecido pelo Unicef.

Valeu!

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