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Sem imprensa livre não existe liberdade nem Democracia. Mas ser jornalista no Brasil é profissão das mais perigosas. Agressões morais, físicas e até tortura e morte são consequências para os profissionais que desafiam o poder e o crime organizado. Centenas de jornalistas já tombaram vítimas da violência pelo simples fato de publicarem a verdade ou exercerem sua independência, livre pensar e manifestar, direito assegurado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Cidadão, por vários Tratados internacionais e pela Constituição Federal brasileira.

Na semana passada, o portal Ver-O-Fato, editado pelo respeitado jornalista paraense Carlos Mendes, que milita há décadas na profissão e é membro da Academia Paraense de Jornalismo, foi hackeado e ficou fora do ar por três dias, assim como seu telefone celular, também atacado, com perda de dezenas de contatos. Os prejuízos são irrecuperáveis, posto que a velocidade das notícias na internet é instantânea, e ele – e seus leitores – ficaram privados das publicações. Após gastos com o reforço da segurança no ambiente virtual, o jornalista ainda enfrentou os transtornos de ter que constituir advogado para registrar Boletim de Ocorrência Policial e representar ao Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público, e ao Ministério Público Federal, no sentido de que garantam o respeito aos direitos constitucionais e requisitem à Polícia Civil e à Polícia Federal, respectivamente, o necessário inquérito a fim de apurar as responsabilidades, identificar os hackers e descobrir o financiador ou financiadores.

Quando um jornalista é atacado toda a sociedade o é, por extensão. Não porque a categoria seja mais importante do que qualquer outra, mas sim pela sua missão de informar e dar voz aos que sem ela são invisíveis. Os jornalistas que publicam a verdade, mesmo enfrentando todo tipo de perseguição, prestam relevante serviço público. Tanto assim que o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal a respeito da liberdade de imprensa, de eficácia vinculante, que deve ser obrigatoriamente seguido por todos os juízes e tribunais do Brasil, é este:

“(…) Mas a decisiva questão é comprovar que o nosso Magno Texto Federal levou o tema da liberdade de imprensa na devida conta. Deu a ela, imprensa, roupagem formal na medida exata da respectiva substância. Pois é definitiva lição da História que, em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica. É a trajetória humana, é a vida, são os fatos, o pensamento e as obras dos mais acreditados formadores de opinião que retratam sob todas as cores, luzes e contornos que imprensa apenas meio livre é um tão arremedo de imprensa como a própria meia verdade das coisas o é para a explicação cabal dos fenômenos, seres, condutas, ideias. Sobretudo ideias, cuja livre circulação no mundo é tão necessária quanto o desembaraçado fluir do sangue pelas nossas veias e o desobstruído percurso do ar pelos nossos pulmões e vias aéreas. 

Se é assim, não há opção diferente daquela que seguramente fez o nosso Magno Texto Republicano: consagrar a plenitude de uma liberdade tão intrinsecamente luminosa que sempre compensa, de muito, de sobejo, inumeravelmente, as quedas de voltagem que lhe infligem profissionais e organizações aferrados a práticas de um tempo que estrebucha, porque já deu o que tinha de dar de voluntarismo, chantagem, birra, perseguição. Esparsas nuvens escuras a se esgueirar, intrusas, por um céu que somente se compraz em hospedar o sol a pino. Exceção feita, já o vimos, a eventuais períodos de estado de sítio, mas ainda assim “na forma da lei”. Não da vontade caprichosa ou arbitrária dos órgãos e autoridades situados na cúpula do Poder Executivo, ou mesmo do Poder Judiciário. 

(…) 

Daqui já se vai desprendendo a intelecção do quanto a imprensa livre contribui para a concretização dos mais excelsos princípios constitucionais. A começar pelos mencionados princípios da “soberania” (inciso I do art. 1º) e da “cidadania” (inciso II do mesmo art. 1º), entendida a soberania como exclusiva qualidade do eleitor-soberano, e a cidadania como apanágio do cidadão, claro, mas do cidadão no velho e sempre atual sentido grego: aquele habitante da cidade que se interessa por tudo que é de todos; isto é, cidadania como o direito de conhecer e acompanhar de perto as coisas do Poder, os assuntos da pólis. 

Organicamente. Militantemente. Saltando aos olhos que tais direitos serão tanto melhor exercidos quanto mais denso e atualizado for o acervo de informações que se possa obter por conduto da imprensa (contribuição que a internet em muito robustece, faça-se o registro).  

(…) 

Avanço na tessitura desse novo entrelace orgânico para afirmar que, assim visualizada como verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados. Até porque essas duas categorias de liberdade individual também serão tanto mais intensamente usufruídas quanto veiculadas pela imprensa mesma (ganha-se costas largas ou visibilidade – é fato -, se as liberdades de pensamento e de expressão em geral são usufruídas como o próprio exercício da profissão ou do pendor jornalístico, ou quando vêm a lume por veículo de comunicação social). O que faz de todo o capítulo constitucional sobre a comunicação social um melhorado prolongamento dos preceitos fundamentais da liberdade de manifestação do pensamento e de expressão em sentido lato.  

Comunicando-se, então, a todo o segmento normativo prolongador a natureza jurídica do segmento prolongado; que é a natureza de “DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS”, tal como se lê no título de nº II da nossa Constituição. E para a centrada tutela de tais direitos e garantias é que se presta a ação de descumprimento de preceito fundamental, cujo status de ação constitucional advém da regra que se lê no § 1º do art. 101 da nossa Lei Maior, literis: “A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”. Em suma, a virginal fundamentalidade de um preceito constitucional é repassada, logicamente, para outro ou outros preceitos constitucionais que lhe sejam servientes, ainda que esses outros preceitos façam parte de um conjunto normativo diverso. 

(…) 

Com efeito, e a título de outorga de um direito individual que o ritmo de civilização do Brasil impôs como conatural à espécie humana (pois sem ele o indivíduo como que se fragmenta em sua incomparável dignidade e assim deixa de ser o ápice da escala animal para se reduzir a subespécie), a Constituição proclama que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (inciso IV do art. 5º). Assim também, e de novo como pauta de direitos mais fortemente entroncados com a dignidade da pessoa humana, a nossa Lei Maior estabelece nesse mesmo art. 5º que: a) “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (inciso IX); b) “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (inciso XIII); c) ”é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional” (inciso XIV); d) “conceder-se-á habeas data: a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público: b) para a retificação de dados, quando não prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo” (inciso LXXII).  

Discurso libertário que vai reproduzir na cabeça do seu art. 220, agora em favor da imprensa, com pequenas alterações vocabulares e maior teor de radicalidade e largueza.  

Confira-se: 

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.  

É precisamente isto: no último dispositivo transcrito a Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. Requinte de proteção que bem espelha a proposição de que a imprensa é o espaço institucional que melhor se disponibiliza para o uso articulado do pensamento e do sentimento humanos como fatores de defesa e promoção do indivíduo, tanto quanto da organização do Estado e da sociedade. Plus protecional que ainda se explica pela anterior consideração de que é pelos mais altos e largos portais da imprensa que a democracia vê os seus mais excelsos conteúdos descerem dos colmos olímpicos da pura abstratividade para penetrar fundo na carne do real. Dando-se que a recíproca é verdadeira: quanto mais a democracia é servida pela imprensa, mais a imprensa é servida pela democracia. Como nos versos do poeta santista Vicente de Carvalho, uma diz para a outra, solene e agradecidamente, “Eu sou quem sou por serdes vós quem sois”. (Ministro Carlos Ayres Britto, no julgamento da ADPF 130/DF, da qual foi relator no STF).

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, presidente da Academia Paraense de Jornalismo, membro da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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