Afinal, qual o fundamento do direito à partir da era moderna?
Por que obedecer o direito se ele bem paga meus boletos?
Quando os teóricos e filósofos lançam esta pergunta, é para justificar por qual razão as sociedades organizadas escolhem obedecer às ordens emanadas por um ente alheio à autonomia e à liberdade individuais.
Há dois grandes modelos teóricos no Ocidente (além de um terceiro, híbrido, como sucessão destes dois modelos): o jusnaturalismo e o juspositivismo. Cada um destes modelos oferece um método de aplicação do direito e, por sua vez, um fundamento de validade para a obediência às leis emanadas pelo estado.
Neste primeiro momento, farei um breve apanhado sobre o modelo jusnaturalista, a partir da leitura do gênio de Turim, Norberto Bobbio, que dedicou quase um século de sua vida ao estudo do direito, e de seu colaborador, Michelangelo Bovero.
Por que nós, sujeitos das sociedades complexas, decidimos abrir mão do estado de natureza e da luta de todos contra todos? Abordarei o assunto a partir da leitura de grandes mestres que me inspiraram em quase duas décadas de estudo do direito
Este texto tematizará o jusnaturalismo, de modo a caracterizar esta escola do direito desenvolvida na idade moderna, apresentando os traços característicos que a diferencia de outras teorias. O autor, para realizar seu trabalho, refere a vários filósofos que, segundo afirma, representam traços dessa doutrina. A exemplo, Grócio, Pufendorf, Hobbes, Spinoza, Locke, Rousseau e Kant, os quais, apesar de terem empreendido pensamentos diversos, aproximam-se metodologicamente do que Bobbio conceitua como “escola” ou “doutrina” do direito natural.
O problema enfrentado pelo autor reside em aproximar os diversos autores ditos jusnaturalistas, e, ainda que considerada a disparidade entre eles, compreendê-los sob uma mesma sigla: a “escola do direito natural”.
Para elaborar sua tese, o autor, argumenta que, embora tenham percorrido caminhos diversos, grandes filósofos como Hobbes, Leibiniz, Locke e Kant, elaboradores de doutrinas até mesmo conflitantes, compuseram, pelo método de investigação utilizado, a escola do direito natural. Para consolidar sua tese, Bobbio afirma que o princípio que unifica esses autores não é propriamente o conteúdo de seus pensamentos – por vezes conflitante – ou o objeto de seus trabalhos, que é a natureza; mas o método adotado para o estudo do direito e, em geral, da ética e da filosofia prática, que é o método racional, a aproximar o estudo do direito da ética e da filosofia prática. Portanto, a razão é o fundamento para a aplicação do direito neste modelo teórico.
O autor aduz, como argumento central, o objetivo de construir uma ética racional, apartada da teologia, que garantisse a universalidade dos princípios da conduta humana para além da história, isto é, um sistema válido para qualquer tempo e lugar, construído a partir da análise exclusiva da natureza do homem, imitando, para tanto, o método matemático predominante nas ciências naturais, o qual poderia conferir certeza ao conhecimento das ciências morais.
Narra ainda que, ao longo da história predominara, no campo das ciências morais, o método aristotélico, que entendia não ser possível, no conhecimento do justo e do injusto, atingir a mesma certeza a que se alcança com o raciocínio matemático, só sendo possível chegar a um conhecimento provável, através da dialética e da retórica.
O método racionalista adotado pelo jusnaturalismo, em oposição à tradição aristotélica, pretendia que a tarefa do jurista não se limitasse a interpretar, mas demonstrar as leis a partir da natureza humana. Ou seja, o jusnaturalismo reduz a ciência do direito a uma ciência demonstrativa, defendendo que a tarefa do jurista não seria interpretar regras, mas descobri-las como universais de conduta passíveis de serem extraídos do estudo da natureza do homem. Desta maneira, os jusnaturalistas pretendiam realizar um trabalho semelhante ao do cientista da natureza. Trata-se de um argumento secundário utilizado pelo autor para defender a sua tese do método racionalista que unifica a escola jusnaturalista. A fonte do direito, assim, seria a natureza das coisas.
Exposto o argumento central da construção de uma teoria apartada da teologia e o escopo universalizante do direito extraído do método racionalista do direito, imitador do método das ciências naturais, o autor passa a desenvolver, como argumentos secundários, as implicações da adoção desse método, apresentando a antítese existente entre o pensamento racionalista e o historicismo, representados, respectivamente, pelos modelos de Hobbes e Aristóteles, bem como as idéias de estado de natureza, contrato social, sociedade civil e modelos de Estado, segundo as diversas opiniões dos filósofos jusnaturalistas, os quais, apesar das divergências, apresentam em comum a utilização do método racionalista característico dessa doutrina.
No tópico sobre “razão e história”, o autor marca a posição dos jusnaturalistas, que, tentando afastar a tese aristotélica do conhecimento apenas provável das coisas morais, afirma que as ciências morais devem estudar a conformidade ou não das ações humanas às regras estabelecidas e que o conhecimento dessas regras não poderia ser alcançado pelo estudo das leis positivas, as quais são variáveis no tempo e no espaço, mas sim se tomando como referência a natureza do homem, que é um componente universal.
Surge, assim, o argumento de que, sendo o direito uma ciência demonstrativa – o que era um ideal comum a todos os jusnaturalistas -, recusava-se o argumento do “consenso”, isto é, de que as leis naturais comuns a todos os povos poderiam ser encontradas através de um estudo comparado das diversas legislações. Para os jusnaturalistas, o estudo das regras não deveria se centrar nelas mesmas como entes morais, mas na análise da natureza humana.
Para delinear o campo da tese jusnaturalista, que teorizava a existência de leis universais para além da história, extraíveis da natureza humana, Bobbio contrapõe o jusnaturalismo ao historicismo, que criticava metodologicamente o jusnaturalismo por pretender estudar a história com instrumentos conceituais com os quais os físicos estudaram o mundo da natureza; além de fazer uma crítica política a este modelo, que, sob a face conservadora, via no abstratismo do direito de razão o princípio de subversão da ordem constituída; e a revolucionária, que via no mesmo abstratismo do direito a ilusão de uma nova ordem fundada na liberdade e na igualdade. Como plano de fundo desta crítica ideológica, argumenta Bobbio, reside a crítica metodológica e que o jusnaturalismo, erroneamente, emprestou o método do cientista da natureza para estudar o mundo da história.
Bobbio apresenta alguns modelos de estado, inclusive o modelo de Aristóteles, principal rival dos jusnaturalistas, marcando o pensamento dos autores que, segundo ele, teorizam a origem do estado a partir do que ele chama de escola do direito natural.
Tratando do modelo hobbesiano, o autor destaca a inovação que representa o direito natural na teoria do direito, que até então se preocupava principalmente com questões de direito privado, o qual era a base do direito romano. O jusnaturalismo foi responsável pela sistematização geral do direito, passando este a compreender com a mesma importância tanto o direito privado quanto o direito público, na medida em que o direito público moderno nascera de conflitos de poder desconhecidos na sociedade antiga.
Dessa forma, o autor se refere à obra De cive de Hobbes, que marca, esta sim, o início do jusnaturalismo político e da teorização racional do direito e do estado, sendo caracterizada pelo abandono do modelo historicista embasado na autoridade de Aristóteles e pela adoção de um “método geométrico”, tentando explicar a origem do Estado com esteio em uma construção racional derivada da natureza humana.
Na teoria geral do direito, reafirma o autor, o que aproxima os jusnaturalistas é o método. Quanto ao direito público e à doutrina do Estado, os jusnaturalistas são coerentes não somente pelo método racionalizante, mas por adotarem um modelo teórico próprio; antítese de dois elementos fundamentais: a sociedade de natureza e a sociedade civil, embora esses elementos sejam tratados com diversos conteúdos ideológicos pelos filósofos jusnataralistas. Por esse modelo teórico, os indivíduos isolados no estado de natureza, onde reinam as paixões e os instintos, convencionam voluntariamente, com base na razão, sair desse estado, passando, assim, à sociedade civil ou estado político.
De tal sorte, o princípio de legitimação da sociedade civil é o consenso que tem origem em um pacto consciente entre homens livres. Nota-se uma distinção quanto ao tema do consenso: como já dito antes, no direito, não cabe falar em consenso para a escola de direito natural, pois, para esta escola, o direito seria extraído e demonstrado a partir da natureza humana e não da dialética e da retórica.
Após tratar do modelo hobbesiano, do qual derivam os modelos de Estado dos demais filósofos jusnaturalistas, o autor passa a tratar da sua antítese, ou seja, do modelo aristotélico, predominante na filosofia política anterior ao jusnaturalismo, e que adotava uma concepção muito diferente da deste modelo quanto à reconstrução da origem e do fundamento do Estado, valendo-se não de uma construção racional, mas de uma construção histórica, ainda que imaginária, das etapas através das quais a humanidade passou de formas primitivas (família) a formas evoluídas de sociedade, até chegar ao Estado.
A passagem de uma fase pré-política ao estado político se deve não a uma convenção, um ato racional, mas ocorre através do efeito de causas naturais, decorrendo das necessidades que a sociedade exige para evoluir. O princípio da legitimação da sociedade política para esse modelo não é o consenso, mas o estado de necessidade, quer dizer, a própria natureza social do homem.
A diferença mais relevante entre os dois modelos explanados é a que se refere à relação indivíduo/sociedade. No modelo aristotélico, está no início a sociedade, uma sociedade familiar em que as relações fundamentais são relações entre superior e inferior e, portanto, são relações de desigualdade. No modelo jusnaturalista, o estado pré-político de natureza é constituído de indivíduos isolados que vivem em estado de liberdade e igualdade, refletindo uma visão individualista da sociedade, própria da concepção de mundo burguesa. Essa diferença, assim, é fundamental para uma interpretação histórica e ideológica de ambos os modelos, os quais foram construídos em razão da conjuntura predominante a partir da antiguidade e da idade moderna, respectivamente, para o modelo aristotélico e para o modelo jusnaturalista.
Veja-se que a idéia jusnaturalista de estado de natureza pré-estatal em que os indivíduos livres e iguais pactuavam a formação de uma sociedade civil, abdicando de certos direitos, foi de grande importância para fundamentação filosófica dos direitos humanos, concebidos como direitos pré-estatais e que, portanto, deveriam ser respeitados até mesmo pelo Estado, independente do seu reconhecimento jurídico formal por parte deste.
O modelo hobbesiano sofreu diversas variações pelos filósofos jusnaturalistas que podem ser agrupadas em três temas: o ponto de partida (estado de natureza); o ponto de chegada (sociedade civil) e o meio pelo qual é feita a transição entre um e outro (contrato social).
Quanto ao caráter do estado de natureza, os filósofos divergiram se se tratava de um estado histórico ou imaginado, se era pacífico ou belicioso, e se era um estado de isolamento ou social.
O autor observa que certos autores, como Hobbes, Pufendorf e Locke, consideraram que um estado de natureza absoluto, universal, seria apenas hipotético, só sendo possível um estado de natureza parcial, a exemplo da relação entre Estados soberanos, o estado de guerra civil e o estado de algumas sociedade primitivas. Outros, como Rousseau, consideraram esse estado histórico, ainda que imaginariamente.
Quanto à questão de saber se o estado de natureza seria pacífico ou belicioso, embora sempre ele deva ser entendido como um estado transitório segundo a concepção jusnaturalista, também os filósofos divergiram. Para Hobbes é um estado de guerra; para Pufendorf e Locke é um estado de paz, embora seja um estado negativo; Kant não se posiciona, mas entende que é um estado negativo; para Rousseau, que tem uma posição triádica (estado de natureza, sociedade civil, república), somente o estado de natureza e a república seriam momentos positivos.
Quanto a saber se o estado de natureza seria um estado de isolamento ou de associação de indivíduos, para todos os escritores acima referidos esse estado seria um estado de isolamento do indivíduo, posicionamento chamado de direito natural individual, que se contrapõe ao chamado direito natural social.
No tópico do texto relativo ao contrato social, merece destaque a afirmação de que o que legitima as sociedades políticas é o consenso, nascendo a obrigação de obediência do súdito em relação ao soberano de um contrato social.
Mesmo nesse tema do contrato social os diversos filósofos citados divergem, sendo a questão apresentada sob duas variações, quais sejam, a modalidade de realização e o conteúdo. Quanto ao modo de realização, é opinião comum de vários escritores que são necessárias duas convenções sucessivas para originar o Estado: o pacto de sociedade e o pacto de submissão. O posicionamento de Hobbes é que só haveria um único pacto de união, destinado a formação da sociedade e que simultaneamente sujeitava os que a ele aderissem.
Enquanto para as formas aristotélicas e monárquicas há os dois pactos, para a o modelo democrático de Estado haveria somente um pacto de sociedade, não havendo necessidade de um pacto de submissão entre o povo e o próprio povo, titular do poder.
Quanto ao conteúdo do contrato social, questionou-se se o homem racional autorizou a transferência de todos ou de apenas alguns direitos que possuía no estado de natureza para formação do Estado, temática de grande importância para uma fundamentação filosófica dos direitos humanos a partir da escola do direito natural. As várias teorias contratualistas se distinguiram com base na quantidade e na qualidade dos direitos transferidos pelo indivíduo ao Estado. Rousseau foi o que concebeu a alienação de direitos mais drástica, mas a transferência de direitos naturais seria em prol do corpo político que para ele seria constituído da totalidade dos contratantes. Já para Hobbes, o único bem que o homem não renuncia é a vida, enquanto para Spinoza o único bem irrenunciável seria a liberdade de pensamento. Por sua vez, para Locke, a transferência de direitos é limitada a um único direito, o de fazer justiça por si mesmo, sendo absolutamente irrenunciável para ele o direito de propriedade.
Em relação ao tema da sociedade civil, da mesma forma houve grandes divergências entre os teóricos da escola do direito natural, que podem ser agrupadas em três questões: se o poder soberano é absoluto ou limitado; se é indivisível ou divisível, e se se pode resistir a ele ou não.
É preciso esclarecer, de início, que nenhum dos teóricos citados defendia um poder sem limites; a discussão refere-se à existência ou não de limites jurídicos ao poder estatal, pois é certo que todos os autores defendiam a existência de limites de fato, derivados do direito natural. A questão do caráter absoluto ou não do poder soberano diz respeito, na verdade, ao fato de o soberano ser ou não submisso a suas próprias leis. Em favor do poder absoluto posicionam-se Hobbes, Spinoza, Rousseau e Kant.
Quanto à indivisibilidade ou não do poder estatal, Hobbes e Rousseau defendiam a indivisibilidade, enquanto Locke, Mostesquieu e Kant defendiam a divisibilidade. Mas é preciso esclarecer a diferente perspectiva de abordagem da questão realizada pelas duas correntes, de forma a perceber que os seus posicionamentos não conflitam. Isso se dá porque os defensores da indivisibilidade do poder estatal se referiam à divisão do poder em órgãos diversos (rei, câmara dos lordes e dos comuns) em colaboração entre si, modelo chamado de governo misto. Já os defensores da divisibilidade se referiam à divisão das funções legislativa, executiva e judiciária, não questionando a unidade do poder soberano defendida pela outra corrente.
No que concerne à possibilidade de resistência ao poder estatal, os teóricos divergem conforme considerem como mal extremo a anarquia ou o despotismo. Assim, Hobbes, para quem o mal extremo é a anarquia, considera que o poder do príncipe é irresistível, posição que é compartilhada com Spinoza, enquanto que Locke, que vê o despotismo como mal extremo, considera ser possível resistir, quer dizer, desobedecer ao soberano.
Trata-se de um grande problema para a teoria racional do Estado a tentativa de conciliar dois bens incompatíveis: a obediência e a liberdade. Spinoza propôs uma solução, também adotada por Kant, de permitir a obediência absoluta quanto às ações, permitindo uma liberdade total em relação ao pensamento. Já para Locke a obediência não é absoluta, mas condicionada ao respeito pelo soberano dos limites pré-estabelecidos ao poder supremo, enquanto que para Rousseau o dever de obediência é absoluto, mas se refere ao dever de obediência à lei, que para ele é o que consiste a liberdade.
De todas essas divergências entre os filósofos jusnaturalistas, ficou claro que tal fato decorre de diferenças ideológicas dos teóricos, sendo que cada um deles têm uma posição própria sobre qual a melhor forma de governo, podendo-se entrever três posições: a preferência pelo governo monárquico (Hobbes); democrático (Spinoza, Rousseau) ou constitucional representativo (Locke e Kant). Como é possível perceber, embora a teoria do direito natural seja una quanto ao método e estrutura, ela é utilizada por diversas concepções ideológicas, conforme o fim a que ela serve.
Mesmo assim, constata-se mais uma vez a característica comum de tentar construir uma teoria racional do Estado, ou seja, trata-se de uma teoria com um método próprio, motivo por que o autor se ocupou em expor exaustivamente as divergências ideológicas dos teóricos jusnaturalistas, procurando mostrar, como argumento secundário da sua tese do método próprio racionalista do jusnaturalismo, que o uso ideológico da teoria não descaracteriza o núcleo comum presente no pensamento daqueles diversos teóricos.
O método racionalista característico do jusnaturalismo, dessa forma, repercutiu em todos os pontos que foram abordados no texto, seja na construção da estrutura do modelo de dicotomia entre estado de natureza e sociedade civil, seja na concepção contratualista da sociedade política ou mesmo na construção de uma teoria racional do Estado.
A construção de uma teoria racional do Estado teve o significado de afastar qualquer concepção teológica na construção dessa idéia, passando-se a conceber o Estado como o único ente racional capaz de propiciar ao homem a plena realização de sua racionalidade.
Para alguns teóricos, como Hobbes, Spinoza e Locke, a saída do estado de natureza e o ingresso na sociedade civil decorreria de um cálculo utilitário, com o objetivo de garantir ou a paz, ou a segurança, ou outro valor tido como fim do Estado, conforme estabelecido pelos diversos modelos teóricos jusnaturalistas. Já para Kant, essa transição seria uma dever moral.
A racionalidade do Estado é explicitada pela lei, caracterizando-se o Estado moderno pela redução de toda forma de direito ao direito estatal. Nesse passo, a idéia de direitos humanos se contrapõe a esse monopólio da produção jurídica, remanescendo direitos humanos que não foram objeto de positivação pelo Estado, daí a importância da construção jusnaturalista como fundamento ideológico que deu suporte para o início da concepção de direitos humanos.
Apesar dessa importante contribuição, não se poderia deixar de reconhecer que essa concepção teórica perdeu espaço ao longo do tempo, motivo por que o autor explicita que, embora a idéia de Estado-razão tenha chegado até Hegel, este autor também representou o fim do jusnaturalismo.
Hegel retoma o modelo aristotélico no ponto em que entende que a sociedade civil dos jusnaturalistas não representa o Estado em sua totalidade. O Estado seria o último estágio do desenvolvimento do homem, processo que se iniciou com a família, passando depois pela sociedade civil. Ele critica a idéia de contratualismo do jusnaturalismo, a qual não serviria para explicar o salto da natureza à história, pois, se assim fosse, bastaria o indivíduo se considerar livre e romper com o acordo de associação conforme sua conveniência, pelo que entende que a formação do Estado não decorreu de um arbítrio metahistórico de indivíduos, mas sim da formação concreta de um espírito de união que ele chama de um “espírito do povo”.
O modelo de Hegel representa não só uma antítese, mas uma síntese do modelo jusnaturalista, tendo ele incorporado esta teoria, motivo por que entende que a passagem da sociedade natural para o Estado seria necessária para resolução dos conflitos intersubjetivos que ocorriam naquele estado primitivo, ao mesmo tempo em que ele a superou, criticando-a por não ter posto o Estado suficientemente acima dos indivíduos. Na verdade, a verdadeira antítese do jusnaturalismo não é a teoria do Estado de Hegel, mas a teoria que teve início com Saint-Simon e que abriu caminho para uma teoria da história invertida, ou seja, que vê como necessária a passagem do Estado para uma sociedade sem Estado, pois este não seria um mediador racional dos conflitos como acreditava a filosofia jusnaturalista, mas sim um instrumento de dominação econômica de uns sobre outros. Dessa forma, para sair do Estado de natureza seria preciso não instituir o Estado, mas sim destruí-lo.
São duas interpretações filosóficas distintas do curso da história: uma vê o Estado como o ponto culminante da história; a outra o vê como fim da história a destruição do Estado.
CONSIDERAÇÕS CRÍTICAS
O principal esforço de Bobbio, conforme entendemos, se dirige no sentido de revisar historicamente os marcos teóricos de início e fim do jusnaturalismo. De início, porque considera que o discutível título o de Galileu das ciências morais atribuído a Hugo Grócio. Para o autor, Hobbes é o Galileu das ciências morais. De ocaso, porque, segundo o autor, a obra de Hegel, ao mesmo tempo em que pretende decretar o fim do jusnaturalismo, o reafirma, porque, não é apenas uma antítese, mas uma síntese do modelo jusnaturalista que pretendia negar. Bobbio entende que o positivismo, marcado pela era das codificações, é o verdadeiro ponto de chegada do jusnaturalismo. Não pelo estatuto histórico, mas pelo status que a compreensão do direito adquire na era das codificações. Bobbio considera que a principal antítese do jusnaturalismo não é Hegel nem a era das codificações de per si, mas a teoria da sociedade que nasce no início do século XVIII, com a revolução industrial, a entender que a solução dos problemas da vida associada deve ser buscada não no sistema político, mas no sistema social.
Enfrentamos o entendimento de que a coerência dos jusnaturalistas reside na idéia de que os autores analisados por Bobbio afirmam o caráter do racional que se afirma no Renascimento, sobretudo no que respeita ao racionalismo e à revivescência da cultura clássica. Hobbes, Russeau e Locke, a exemplo, não se há de negar, buscaram a legitimação do Estado, de encômio aos ideais revolucionários a que serviram, para além do uso da força, do estado paternal e da origem divina do estado. Em um campo de análise transcendente à estrita observação jurídica, há um ideal político e filosófico que reúne os principais autores que, segundo Bobbio, compõem a escola do direito natural.
Por outro lado, cotejando jusnaturalismo e positivismo, a tarefa demonstrativa atribuída aos juristas pelo jusnaturalismo não se distancia em muito da perspectiva demonstrativa do direito afirmada pelo positivismo, para quem caberia ao intérprete declarar a vontade da lei. O deslocamento pendular na história se processa no reinclusão da moral como componente do direito, negada pelo jusnaturalismo e pelo positivismo, conforme podemos apreender dos modelos interpretativos que recusam as duas escolas. A exemplo, a interpretação com do direito proposta por autores como Ronald Dworkin e Riccardo Guastini.
Bobbio, relendo Hobbes, Pufendorf, Locke, Rousseau, Kant e Hegel, revê a teoria jusnaturalista e a sigla do direito natural a partir de autores insignes. Perscruta acerca do que pensavam os filósofos que sustentaram a idéia de que o poder do Estado não emanava da transcendência do poder divino, convencidos de que os seres humanos saíram do estado da natureza, através do contrato social: um legado da razão.
Bobbio nos apresenta e reconstitui o quadro do jusnaturalismo considerando uma análise que aprofunda diferenças superficiais entre tendências que, embora diversas, se fundam sobre a razão natural que inaugurou as teorias do estado. A sagacidade do autor reside em reunir sob uma sigla comum todos os autores que se empenharam em fundar uma ciência demonstrativa do direito a partir da lei natural, tendo como plano comum a “natureza das coisas”.
Este texto encerra a perspectiva do modelo jusnaturalista, pelo qual o fundamento para a obediência ao direito é a natureza humana, enquanto o método aplicado é o racional. No próximo texto desta série falarei sobre o modelo positivista.
BOBBIO, Norberto. O Modelo jusnaturalista. In: BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. Ed. Brasiliense, 1986.
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