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O juiz titular da 2ª Vara do Tribunal do Júri de Belém, Homero Lamarão, considerou procedente a denúncia do promotor Edson Augusto Cardoso de Souza e decretou a pronúncia de Marcos de Souza Oliveira, piloto da lancha Dona Lourdes II, que naufragou causando vinte e quatro óbitos, mais sessenta e duas vítimas sobreviventes, em 8 de setembro de 2022, próximo da Ilha de Cotijuba, em frente à praia do “Vai quem quer”, por volta de 5h30 da madrugada. A embarcação tinha saído do porto do Camarazinho, no município de Cachoeira do Arari, arquipélago do Marajó, com mais de cinquenta passageiros, além dos tripulantes, e ao longo do percurso embarcou mais passageiros, sem controle. Isso significa que ele será julgado pelo Tribunal do Júri, em data ainda a ser marcada, porque da decisão ainda cabe recurso.

Ao historiar o caso na ação penal, o promotor de justiça Edson Cardoso de Souza registrou que no porto Camará, em Salvaterra, os que estavam a bordo protestaram quando mais passageiros entraram, por ser evidente a lotação acima do permitido. Mas a viagem continuou em direção a Belém. Passageiros sobreviventes e tripulantes contaram que tentaram pegar os coletes, porém Marcos disse não haver necessidade, alegando que a Capitania dos Portos prestaria socorro. Contudo, ao invés de acionar a CPAOR, ligou para sua mãe, a dona da lancha; e não havia coletes salva-vidas suficientes.

As vítimas sobreviventes conseguiram nadar ou foram retiradas com vida do rio por terceiros.

A prisão preventiva foi decretada ainda na Vara de Inquéritos da Capital, e Marcos de Souza foi posto em liberdade pelo 2º Grau através do julgamento de Habeas Corpus, condicionada ao cumprimento das medidas cautelares e à suspensão de sua habilitação para atividades náuticas até o fim do processo criminal.

Conforme a Arcon (atual Artran) e a CPAOR, a embarcação Dona Lourdes II não tinha autorização para realizar o trajeto do naufrágio (Camarazinho/Ver-o-Peso), só para o trecho Camarazinho/Ver-o-Peso), e estava vencida. A Arcon declarou ter solicitado auxílio à Marinha para que, com o seu poder de polícia, impedisse a navegação da Dona Lourdes II, pois trafegava de maneira clandestina; o prefeito de Cachoeira do Arari admitiu que a embarcação não estava regular; documento juntado pela Arcon sustenta que a proprietária da empresa M de Souza Navegação requereu a exploração da linha hidroviária, apresentando como embarcação a ser utilizada a Clícia X e não Dona Lourdes II. Ademais, não finalizou o processo administrativo na Agência.

Segundo relatos dos sobreviventes, os equipamentos de segurança estavam em desconformidade com as normas, sendo que alguns coletes teriam rasgado no momento do naufrágio e o réu teria deixado de orientar os passageiros sobre os procedimentos a serem adotados em situação de emergência, além de, pós naufrágio, deixar o local sem prestar auxílio aos passageiros. Testemunhas e o Ministério Público afirmam que o réu superlotou a embarcação objetivando lucro.

Ao analisar as circunstâncias, o juiz Homero Lamarão vislumbrou indícios de “aceitação do resultado” enquanto ponto fulcral para configuração de possível homicídio doloso eventual e tentativas de homicídio. O magistrado, que é professor doutor em direito, considerou importante mencionar na sentença que a lei não distingue o dolo direto do eventual, punindo o autor por crime doloso, consoante jurisprudência do STJ.

Ademais, é entendimento do magistrado ser reservado aos jurados o exame sobre o elemento subjetivo da conduta, em tese, criminosa, já que o dolo eventual não é extraído da mente do agente, e sim das circunstâncias do fato, cuja apreciação compete ao Conselho de Sentença.

Ao expor os motivos ensejadores da sua decisão, o juiz Homero Lamarão ressaltou que de modo algum a Pronúncia deve ser vista como uma condenação prévia, reconhecendo, apenas, a plausibilidade da acusação.

A vítima I.P. relatou que o réu, no momento do naufrágio, estava falando ao celular com sua genitora, ao invés de ajudar os passageiros; que não era dado colete salva-vidas para os passageiros; que os coletes eram poucos e estavam amarrados ao barco; que, próximo a Cotijuba, os passageiros ouviram um baque grande e se preocuparam e por isso tentaram pegar os coletes, porém viram o réu gritando com sua esposa dizendo que não seria necessário, pois o acontecido era normal e que estava telefonando para a Capitania dos Portos para ajudar; que como tem um pouco de experiência foi até o motor e verificou que estava cheio de água; que pegou sua família e mais 5 coletes e foram em direção à proa, alertando os outros passageiros; que o réu não ajudou ninguém; que os coletes estavam em mau estado, não tinham os fios para arramar ao corpo e estavam vencidos; que colocou um na sua sogra, porém ela perdeu a vida porque o colete estava inservível. Relatou que no dia 7/9 daquele ano foi até a residência do réu comprar passagem para vir até Belém trazer sua filha que estava grávida, pois seu neto iria nascer dia 9/9 e o réu disse que não iria ter viagem porque a embarcação estava parada com problema no eixo, estava providenciando a solda e só teria viagens a partir no dia 8/9; que havia quantidade excessiva de pessoas na embarcação; que, apesar de já ter viajado outras vezes na lancha nunca tinha visto a lotação daquela maneira; que o local do naufrágio era intrafegável pelo quantidade de pedras que existiam no chamado Pimenteira e que acredita ser por este motivo que o réu retirou a lancha, sem autorização, de lá; que nas outras duas vezes que viajou na embarcação do réu não havia trafegado na rota conhecida por ser perigosa; que o réu pegou dois coletes, deu um para sua esposa e abandonou o barco; que os passageiros queriam os coletes mas o réu não deixou ninguém pegar.

O próprio Marcos Souza confirmou durante o interrogatório perante a Capitã-Tenente encarregada pelo Inquérito que tramitou na Capitania dos Portos da Amazônia Oriental que a lancha teve problemas técnicos dias antes da viagem.

A vítima A.A. também relatou que o colete que pegou para salvaguardar sua vida rasgou; que sobreviveu com ajuda de sua mochila que colocou embaixo de sua barriga e flutuou.

A testemunha Anderson contou que em nenhum momento o réu orientou os seus passageiros sobre qual atitude tomar para salvar suas vidas, apenas mandava as pessoas “se acalmarem e ficarem sentados”. Disse que o colete que pegou não tinha apito e estava rasgado, pensou em apitar para chamar atenção de outras embarcações, mas, sem sucesso; que estava em pé na embarcação por não existir lugar vago para sentar.

As testemunhas arroladas pelo Ministério Público, em uníssono, disseram que a rota pela qual a Dona Lourdes trafegava era diferente da que os demais barcos navegavam, sustentaram a superlotação, o mau estado dos coletes e a ausência de orientação do réu de como proceder naquele momento, apesar de ser o comandante e contramestre.

A testemunha de defesa Eurípedes falou que era diretor da Arcon à época, e, apesar de estar gozando férias na data do naufrágio, afirmou que estava tramitando na Agência um pedido de autorização advindo da empresa M de Souza Navegação; que a Dona Lourdes II detinha autorização para fazer outra rota e não aquela do dia do acidente. Salientou que mero pedido de autorização não dá o direito de fazer o serviço, sem que seja homologado; que a diretoria de fiscalização verificou que a rota estava sendo feita clandestinamente e comunicou à Marinha. Explicou que para fazer transporte é preciso estar homologado pelo poder concedente que é o Conselho Estadual de Trânsito (Cetran), autorizado pela Arcon (hoje Artran) e com registro na Marinha, estando a empresa ainda em processo; que a Arcon, trinta dias antes do naufrágio, sinalizou à Marinha para que impedisse Dona Lourdes II de realizar aquela rota.

A testemunha de defesa Joélcio, bombeiro militar, estava na embarcação no dia do naufrágio e ao ser perguntado sobre os coletes, relatou que: “bom… essa informação eu posso dizer com precisão, coletes tinham porém pela minha visão e tempo de trabalho nessa área, vencidos e sem condição de uso; eu mesmo peguei, alguns não tinham nem o cinto e na hora do naufrágio eu fiz o teste, alguns se desfaziam…”

Além dos depoimentos, há nos autos vários documentos, inclusive solicitação do então prefeito de Cachoeira do Arari à Arcon para a liberação da linha de transporte na vila de Camará e Umarizal para essa empresa, afirmando que já atuava na linha, porém de forma “ainda não regularizada na agência”. Também consta um Certificado de Segurança da Navegação emitido em 2021 pela Tecnóloga Naval, aduzindo, dentre outros detalhes, que a quantidade de passageiros autorizados era de oitenta e duas pessoas, informação do réu em seu interrogatório perante autoridade policial e em Juízo, bem como autorização da Arcon para a empresa executar provisoriamente o transporte fluvial intermunicipal de passageiros na linha Belém/Santa Cruz do Arari/Belém, tendo como validade a data de 2/08/2019.

O réu revelou em seu depoimento em Juízo que havia setenta e cinco pessoas na embarcação no dia do naufrágio, visto que precisou embarcar mais quatorze a pedido do funcionário da Arcon que o parou na localidade chamada Foz do Rio. Apesar das divergências quanto ao número exato de vítimas, foi contabilizado um total de setenta e oito passageiros. Quando acrescido o réu e sua esposa, chega a oitenta. A embarcação tinha autorização para transportar até oitenta e duas pessoas. Mas não se pode desconsiderar a possibilidade de que houvesse pessoas a bordo sem registro formal ou identificação, fato que foi esclarecido pelas testemunhas e pelo próprio réu, que concordaram em afirmar que não havia controle rigoroso do número de passageiros e que as passagens eram adquiridas de maneira informal, ante a ausência de contador ou qualquer documento de controle de passageiros. Tal situação é corroborada pela ausência de registro tanto do réu quanto de sua esposa.

Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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