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Não posso negar o frenesi que me causa quando os meus livros (ou seja, aqueles que me acompanharam – e ainda acompanham – em tantos momentos cruciais da minha vida, aqueles que condimentam a maionese que eu tanto clamo viajar) são adaptados para o audiovisual. Também não posso negar que este frenesi nem sempre é bom, e que foram necessários bons anos para amadurecer o entendimento de que o método da narrativa muda de acordo com as medias e de que um filme jamais será como um livro. E, sim, é esquisito admitir até para mim mesma que, no final das contas, mesmo depois de toda a formação em música e cinema, quem são os meus preferidos são os livros. E sempre serão.

Lembro-me da sensação de infância perdida quando assisti Senhor dos Anéis no cinema. Da revolta pelos personagens cortados, pelas histórias mudadas, pelos detalhes tão importantes para a criança galáctica que passava horas tentando aprender sindarin (uma das línguas élficas) e decorando o atlas da Terra-Média. Hoje, depois de abandonar os radicalismos juvenis, tenho uma avaliação e compreensão completamente diferente da série cinematográfica – o que não aconteceu com a adaptação de O Guia do Mochileiro das Galáxias, que me recuso inclusive a rever, e com as últimas temporadas de Games of Thrones por motivos de que, mesmo quem não leu os livros, entende.

Todo este blábláblá foi para introduzir que, semana passada, fui assistir Dune em sua estreia, numa tela Imax, corroborando com todo o hype mundial. Os livros de Frank Herbert foram tijolos na construção deste ser nerd que vos escreve e tinha excelentes expectativas para a adaptação de Denis Villeneuve, que realizou a continuação mais impecável da história da ficção científica no cinema com Blade Runner 2049. Bem, expectativas alcançadas. Arrakis é tudo aquilo que eu imaginava, Paul Atreides é também tudo aquilo o que eu imaginava (ou seja, só um menino, e não aquela figura tosca que o David Lynch fez um Kyle MacLachlan, muito velho para o papel de um rapaz de quinze anos, passar). Até a mudança de sexo e cor da pele de Liet Kynes, que no cinema virou uma mulher negra, faz todo o sentido (não entrego um dos motivos óbvios porque não quero revelar um spoiler para quem não leu os livros). E Zendaya, ao lado de Timothée Chalamet, são a revanche de uma nova geração de blockbusters que têm como protagonistas atores que são muito mais do que rostos bonitos (com a beleza real, desengonçada, estranha, ainda conservada da recém adolescência), que são incrivelmente profundos em sua arte, sustentando com maestria a essência escondida sob a belíssima fotografia e efeitos especiais.

Sim, era aí onde eu queria chegar. Dune vai muito além dos vermes gigantes e da jornada do herói, assim como Star Wars é muito além dos dois sóis de Tatooine e da luta entre o bem e o mal. Eu sei, muita gente quer ver só os efeitos especiais, e tá tudo bem. Porém estes e tantos outros universos cósmicos e fenomenais aparentemente criados para o puro entretenimento da juventude têm camadas que os deixam ainda mais interessante para aqueles que as examinarem. Avatar, por exemplo, é até hoje a maior bilheteria da história do cinema, e toda a sua tecnologia revolucionária ilustra uma história anticolonialista, declaradamente inspirada em Belo Monte, no Pará. O realizador, James Cameron, inclusive, participou ativamente dos protestos contra a hidrelétrica logo após o lançamento deste filme (a inundação acabou por acontecer, desalojando as famílias ribeirinhas, provocando um imenso impacto ambiental, e sem nenhuma contrapartida pro povo paraense, que paga a energia elétrica mais cara do Brasil).

Ver além da superfície, interpretar um texto – seja ele escrito, falado ou cantado – é uma prática perigosa de negligenciar tanto nas associações do fantástico com o real quanto as do real com o fantástico. É por isso que vemos pessoas (os famosos tios do whatsapp, que infelizmente podem ter todas as idades) a acreditarem em tantas histórias esdruxulas que pretendem justificar inclusive crimes; é por isso que vemos por aí tanta gente a criticar nós, artistas, por nossas atitudes políticas. As artes, meus caros, sempre foram e sempre serão políticas. Basta uma leve observação no contexto histórico para se perceber. Aliás, todos nós somos seres políticos, até quando nos abstemos deste direito.

E, para falar em política e ficção científica, não posso afinal deixar de recomendar a série televisiva Foundation, adaptada da série de livros homônima de Isaac Asimov, que – ouso dizer – é uma produção espetacular da Apple TV+. Apesar de anos depois de ler os livros eu ter descoberto sobre o deplorável comportamento sexista de Asimov na vida real, uma das belezas da criação artística é que, depois de lançada, ela tem seu voo de libertação. A série, com atuações e realização de tirar o fôlego, dá vontade de resgatar os livros na casa da minha mãe para mergulhar outra vez numa jornada do herói na qual salvar a ciência e o conhecimento é o objetivo. Qualquer semelhança com esta nossa repetida realidade não é mera coincidência.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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