Uma das qualidades de um escritor é a observação. Estamos sempre atentos à nossa volta. Minha mulher diz que eu puxo papo com qualquer um. É a curiosidade. As pessoas me trazem suas vidas, sua voz, gírias, a melodia de sua fala. Isso me enriquece quando quero ter personagens da vida comum. Gente de rua. Gente simples. Uma vez, estava sentado em um bar de calçada quando surge uma criança aos prantos. Atrás, os pais ainda segurando balões e presentes. Quando me olhou perguntei o que havia acontecido. O garoto parou e começou a relatar que ainda não queria ter saído da festa em que estava. Seus pais logo vieram e o levaram. Queixa feita, ele parara de chorar. As pessoas querem falar. Foi ótimo quando o Grupo Cuíra abriu seu teatro na Riachuelo com Primeiro de Março. A convivência com o povo do entorno foi maravilhosa. Gerou peças de teatro, oficinas e para as profissionais do sexo, a oportunidade de serem tratadas de maneira igual e participar do amplo debate que acontece a cada processo de ensaio de uma peça teatral. Muitas largaram a profissão e foram procurar uma vida melhor. Para mim, amizades que me enriqueceram de causos, gírias, vidas que eu já vinha colecionando muitos anos antes, pois minha família morava no prédio em frente, voltado para a Presidente Vargas, mas com janelas para trás. Aprendi ali, sobretudo, a não julgar ninguém pela aparência. Tratar igual. Ouvir. O centro das grandes cidades atrai como um grande imã, pessoas que foram expulsas de sua casa, que perderam sua casa, que fugiram e as que não têm para onde ir. Forma-se uma comunidade invisível para quem passa e repassa, dia após dia, apressada, distraída, preocupada com seus assuntos. Essas pessoas como que estão com suas figuras impressas nas esquinas. Elas nos olham. Nos vêem. Sua vida é na rua. Falam alto, sem paredes como limites. Brigam, discutem, amam. À frente de todos. E precisam falar. Precisam contar. Montaram uma espécie de cordão de isolamento em meu caminho para o trabalho, que executei durante 50 anos. Conheço pelos nomes. Alguns por apelidos. Evito os apelidos que são agressivos e humilhantes. Conversamos rapidamente. Às vezes um troco para um café, quem sabe outras coisas. Presentes no Círio. Elas contam seus problemas. Suas alegrias. Ia passando com minha Golden Maria Clara e está um sujeito sentado na soleira da porta de uma casa fechada, na Cidade Velha. Ele acena para Maria. Paro. Me conta que certa vez achou, abandonada em uma caixa de sapato, uma cachorrinha recém nascida. Levou para casa e agora são amigos inseparáveis. Em outra vez, dias atrás, parei em um sinal desses com muitos carros e pessoas pedindo dinheiro, venezuelanos, vendedores de bombons. Vem um garoto, creio, uns 10 anos, pouco alimentado, mas vestido de maneira arrumada, sem andrajos. Apresenta-se à minha janela e exclama: Ninguém gosta de mim!. Pergunto a razão do desabafo. Mostra uma caixa rota de bombons que usava para pedir uns trocados. Seu olhar era de desanimado, decepcionado. Pensei se era mentira, mas não. Ou então foi uma boa entrada, convenhamos. Catei moedas e lhe entreguei. Agora não fique mais chateado. Agradeceu, renovado e o sinal abriu. Acho que está faltando muito isso no mundo. Andamos muito ocupados com nossos assuntos. Cabeça baixa, presos no mundo dos celulares. Precisamos de mais convivência, sem ter uma interface entre nós. As pessoas querem falar. Ser notadas. Entendidas, compreendidas. São, muitas vezes, também os melhores ouvintes. Falamos e o nosso ouvinte não está, na verdade, ouvindo. Está alinhando argumentos para sua resposta. Uma conversa de surdos. Por isso gosto de conversar, ouvir, conhecer, colecionar pessoas. Às vezes estou em uma fila e uma pessoa, desconhecida, faz um comentário, na verdade uma pergunta lançada ao ar à espera de uma resposta e o início de um bate papo. Eu respondo. Fico torcendo para que também ouçam minhas queixas.
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