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Se aos oito anos de idade Casimiro de Abreu corria solto pelas ruas e vielas da aldeia de Barra de São João, semeando lembranças que lhe acompanhariam até o fim da vida; se foi lá que viveu a aurora dos seus dias, numa infância querida que os anos não lhe traziam mais, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais; se, enfim, foi por lá que viveu noites de melodia, naquela doce alegria, naquele ingênuo folgar, com o céu bordado de estrelas, a terra de aromas cheia, com as ondas beijando a areia e a lua beijando o mar, eu, de minha parte, fiz isso tudo e pouco mais correndo solto pelas ruas, vielas, praças e praias do Ilha do Mosqueiro.

Quando rememoro minha infância algumas imagens me vêm à mente com impressionante nitidez, dotadas de seus sons particulares, fiéis às cores originais que, embora desbotadas pelo tempo como fotografias que empalidecem guardadas, ainda colorem as reminiscências do passado. Uma delas é a Praia do Farol, no Mosqueiro, vista do pátio da casa de meus pais, na Rua Abelardo Condurú, por sobre o extenso terreno de esquina onde ficava a residência dos intrépidos Farahzinhos.

Do pátio de cimento batido que circundava a casinha branca pré-fabricada era possível ver o verde das árvores de ajirú, o branco da areia e o marrom quase bege das águas do Rio Pará a perderem-se no infinito, eis que a margem marajoara da baía ficava além da linha do horizonte, desconhecida da criança que dali acreditava enxergar o mundo. A ambiência sonora também remanesce gravada na memória, melodia imaculada e indene à interferência nefasta do homem: o som das ondas a quebrar na praia, do vento a agitar a vegetação e, volta e meia, do hipnótico canto das cigarras anunciando a chegada do verão, atraindo parceiros para o acasalamento ou afugentando predadores.

Eram os sons de Deus a banhar a ilha de paz. Intercalando-os em harmonia, como numa orquestra afinada, havia o ruído cotidiano das casas – as cozinhas a preparar o jantar, as televisões a transmitir as novelas, os passos sobre pisos de tábuas de madeira, algumas mais firmes e outras mais frouxas. Havia o chamado da mãe, o ronco dos poucos carros que passavam pela rua, o tilintar do triângulo do cascalheiro ou da sineta do carrinho da Gelar e, ainda, o arrastar do alumínio sobre a enorme barra de gelo com cujas lascas se fazia o raspa-raspa, aquele néctar da infância que até hoje, quando lembrado, faz encher a boca de água e desejo.

Havia música também, por certo, mas esta comportava-se com discrição e civilidade, como a reconhecer seu papel coadjuvante, sua função de acrescer melodia e emoção à trilha sonora natural da ilha, esta sim o pano de fundo sobre o qual cada um pincelava, com bom senso e urbanidade, as notas musicais de sua preferência. Em nossa casa, por exemplo, ouvia-se muita música popular brasileira, do romantismo de Roberto Carlos ao samba politicamente engajado de Adoniram Barbosa, passando pelas paixões rasgadas de Maysa, Maria Creuza e Marisa Gata Mansa. Boleros também eram frequentes, meu pai sempre os apreciou. Compositores eruditos atendiam o gosto refinado de minha mãe, pianista e professora do Conservatório Carlos Gomes, e algum tango se fazia ouvir quando meu avô paterno aparecia por lá (enquanto escrevo estas linhas quase o vejo a balançar-se na cadeira de palha sob os acordes de La Cumparsita).

É do Mosqueiro, portanto, que trago as melhores saudades que sinto da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais. É dele que lembro quando penso em paz ou relembro que outrora existiu a tranquilidade de dormir com janelas abertas em casas de muros baixos, sem medo, sem receio e sem sobressaltos. A ilha, pode-se dizer, é a Pasárgada para onde quero ir embora, e nem preciso ser amigo do rei, ter a mulher que quero ou a cama que escolherei. Basta-me estar lá com os amigos que já tenho (muito melhores que os do rei) e a mulher que já escolhi (e que escolheria novamente). Perto deles e dela durmo bem em qualquer lugar.

O Mosqueiro traduz, em síntese, o poema de João de Jesus Paes Loureiro: “Ora o rio a passar em busca de si mesmo. Ora as árvores curvadas sob a cruz das tempestades. Ora a elegância das garças pela várzea. Ora a flecha dos guarás no arco dos ventos. Ora turíbulos de gaivotas no poente. Ora um remorso de chuva no horizonte. Ora arirambas tatuando-se no céu. Ora o cortejo de marrecas no funeral do poente.”

Depois de anos distante da ilha, quase tão distante quanto já estou da minha infância, para ela resolvi voltar, como se completasse um ciclo que não é incomum – o do homem que ao amadurecer busca reencontrar o menino que foi no passado, finalmente sabedor, pela sabedoria que os anos lhe trazem, de que naquele menino pode buscar o que lhe vai permitir envelhecer com felicidade. Não por acaso Saramago vaticinou: “Tentei não fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui. Quando me for deste mundo, partirão duas pessoas. Sairei de mãos dadas com a criança que fui.”

Infelizmente, contudo, já não encontrei a mesma ilha, e nem vou me ater ao seu estado de abandono, à deterioração de seus espaços públicos ou às ruas em ruínas; não vou falar da limpeza pública deficiente, da pauperização da atividade econômica, do baixo nível de emprego e renda ou da desvalorização imobiliária decorrente disso tudo. Dessas mazelas eu já tinha conhecimento. Contra elas estava disposto a lutar, decidido a fazer a minha parte, a reinvestir no local, frequentando-o com assiduidade, consumindo em seus restaurantes, comprando em seus mercadinhos e adquirindo bens e serviços produzidos por seus habitantes.

O que eu desconhecia até então, confesso entristecido, é que já não existem os sons de Deus a banhar a bucólica ilha, já não se pode escutar com frequência o ruído das ondas a quebrar na praia, do vento a sussurrar entre as árvores ou o canto das cigarras. Essa sinfonia de beleza e cura deixou de existir, soterrada que foi pelas toneladas de decibéis dos equipamentos sonoros que gente deseducada e socialmente inapta insiste em estacionar à beira das praias, a qualquer hora do dia e da noite, para obrigar todos ao redor a ouvir em volume nocivo à saúde o que geralmente é um lixo musical danoso ao cérebro.

Não bastasse o despautério sem precedentes, o despropósito intolerável, esta prática configura crime ambiental capitulado na legislação brasileira, e deveria ensejar as punições cabíveis, inclusive a apreensão daqueles monumentos tecnológicos à estultice que um determinado vereador já pretendeu, pasme-se, erigir à condição de patrimônio cultural do município (pobre Belém…).

Afora o sofrimento imposto a quem reside na ilha, há inúmeros casos de pessoas que deixaram de frequentá-la ou que venderam suas propriedades por preço vil em razão dessa falta de educação, e conheço muitas outras que estão prestes a fazê-lo, todas exaustas e impotentes ante a chaga do barulho insuportável, tristes e desesperançosas de uma mudança efetiva de rumos.

É preciso reagir, é imprescindível cobrar do poder público medidas de combate a essa praga. Urge salvaguardar os direitos dos milhares de cidadãos que buscam o Mosqueiro e suas praias para viver momentos de descontração e lazer, para estar entre amigos ou em família, para namorar, prosear, jogar conversa fora, pegar um vento no rosto ou simplesmente ouvir os sons de Deus, sem ver-se obrigado a suportar a estupidez dos que não sabem conviver em sociedade.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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