Li há poucos meses um dos livros mais bonitos de que tenho lembrança, e nos últimos dias ele voltou a ecoar em mim, como a pedir para ser lido novamente. Trata-se de ‘Uma casa na escuridão’, do português José Luís Peixoto, seguramente um dos maiores expoentes da literatura lusófona contemporânea.
Envolta num clima de poesia e fantasia, importando-se menos com a realidade e os fatos e mais, muito mais, com a parte de nós que habita o mundo dos sonhos, dimensão onírica da vida, a obra nos fala de um escritor que vê sua história e suas verdades invadidas por soldados inimigos que personificam o mal, a insensibilidade e tudo o mais que há de rude, sádico, vil e mesquinho na humanidade.
No momento mais tenso, quando tomam de assalto a casa que o escritor ocupava juntamente com a sua genitora e uma insólita trupe de fidalgos amigos, os invasores lhe amputam braços e pernas, perfuram os tímpanos da mãe, decepam as mãos do violinista, arrancam o coração do príncipe, perfuram o tórax do visconde, estupram a bondosa escrava e os deixam a todos na companhia do soldado a que chamam Ninguém, um homem sem olhos, sem orelhas, sem nariz e sem língua.
Mesmo soterrado sob desmedida violência e incompreensível maldade, o protagonista insiste no amor como condição essencial da sobrevivência, distinção maior entre o homem e o nada, ainda que nele haja tanta loucura, tanta dicotomia e tantas incertezas – “O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda. O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de claridade e da seiva das rochas. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.”
Embora experimente momentos de intensa agonia e excruciante sofrimento, o personagem principal não se desvencilha do amor e mantém a esperança de por ele ser redimido. Mergulhado em meio às trevas e ao medo, a simples recordação do nobre sentimento é fagulha que não deixa apagar a fogueira da beleza, levando-o a resgatar na memória “um tempo em que nasciam as manhãs e onde tudo acabava bem.”
José Luís Peixoto escreveu diversos outros livros fantásticos, como é o caso de Morreste-me, Nenhum Olhar, Autobiografia, Galveias, Almoço de Domingo e Cemitério de Pianos. Fez também uma venturosa incursão pela poesia, como bem demonstram A criança em Ruínas, Gaveta de Papéis e Regresso à Casa. É, portanto, leitura obrigatória para quem pretende um encontro feliz com o que a literatura tem de melhor. Dentre todos, contudo, “Uma casa da escuridão’ é daqueles que deixam marcas perenes, que precisam estar ao alcance das mãos, na estante mais próxima, sempre que uma inquietação torna imprescindível apelar a um velho amigo.
Não sei exatamente porque o livro me veio à mente com tanta veemência esta semana, mas suponho que seja uma fuga inconsciente dos calabouços da alma, esses subterrâneos escuros, frios e indecifráveis que teimam em nos desviar os sentidos do que é bonito e edificante, obrigando-nos, volta e meia, a abrir as tampas dos esgotos humanos para deixar escapar a podridão que povoa o mundo, infelizmente com mais frequência e maior intensidade do que gostaríamos.
Na semana que passou me constrangeu sobremaneira, trazendo-me melancolia e tristeza, a inominável tragédia ocorrida em Cametá, em que um pai de família, dentista por profissão, assassinou fria e covardemente seus dois filhos menores, crianças de nove e treze anos de idade, inconformado com a separação anunciada pela esposa e mãe das vítimas, tirando em seguida a própria vida.
Um crime bárbaro, abjeto, revoltante para quem é pai e revelador de uma faceta sórdida da nossa precária e incivilizada sociedade, qual seja o machismo, o patriarcado, a suposta proeminência do homem sobre a mulher, tida por muitos como posse, propriedade, parte integrante do casal a quem se nega vontade própria.
Que espécie de insanidade faz um pai olhar para os filhos e vê-los como instrumentos de tortura, mecanismos de ataque, agressão e sevícia à esposa? De onde vem tanta crueldade? Que complexo é esse? Como se origina um trauma capaz de obnubilar os olhos e o coração do macho diante da sua prole em atentado à fêmea que pensa pertencer-lhe?
É grave, muito grave, e deve ser objeto de apreciação e discussão coletivas. Enquanto nação temos que admitir que a violência contra a mulher não é um conjunto de casos isolados, ainda que incessantemente reiterados. É, isto sim, uma doença social com raízes históricas, um traço tortuoso e degenerado da sociedade machista, chauvinista e misógina que precisamos condenar inapelavelmente ao ostracismo.
Me solidarizo sincera e verdadeiramente com essa mãe e mulher, por ironia do destino delegada de polícia com atuação especializada no combate à violência doméstica. Comungo da sua dor, sofro por seu martírio e rogo a Deus que a abrace e fortifique, para que o tempo milagrosamente a ensine a conviver com essa ferida.
Não por acaso, no livro a que me referi no começo está escrito que “Devagar o tempo transforma tudo em tempo. Essa é a explicação da eternidade. Devagar, o tempo transforma tudo em tempo. O ódio transforma-se em tempo, o amor transforma-se em tempo, a dor transforma-se em tempo. Os assuntos que julgamos mais profundos, mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis, transformam-se devagar em tempo. Por si só, o tempo não é nada. A idade de nada é nada. A eternidade não existe e, no entanto, a eternidade existe.”
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