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Muita gente ainda não entendeu o enredo que a Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio levou para a Sapucaí este ano, revelando a tradição afro-amazônica do Tambor de Mina do Pará. “Pororocas Parawaras: As Águas dos Meus Encantos nas Contas dos Curimbós” foi desenvolvido por Mestre Damasceno, Ailson Picanço, Davison Jaime, Tay Coelho e Marcelo Moraes, integrantes da Escola de Samba Deixa Falar, de Belém. Enredo construído a partir do Terreiro de Mina Dois Irmãos, o mais antigo templo afro-paraense, fundado na Belém da transição do Império para a República, pela Mãe de Santo migrante maranhense Josina de Verequete, a 23 de agosto de 1890. Era o ainda Tambor de Santa Bárbara no nascente bairro do Guamá, que ela comandou até o ano de 1929, explica a historiadora e antropóloga Anaíza Vergolino, presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, que dedicou a vida ao estudo, pesquisa e extensão acerca da presença africana na Amazônia, com ênfase na religião, trajetória iniciada sob a orientação do professor Arthur Napoleão Figueiredo, ainda na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal do Pará, nos idos de 1966.

“Terreiro de Mina é um espaço sagrado em que se pode conhecer pelos rituais públicos a tradição religiosa afro-paraense chamada de Mina do Pará, o resultado do processo histórico extremamente denso de duas matrizes religiosas que se interpenetraram: primeiro, a matriz sacralizadora da natureza, que era a dos povos indígenas, dos contingentes das populações negras, e também dos colonos luso-brasileiros, predominante no período colonial. Na sua visão de mundo, o homem era um ser inserido na natureza, vivendo harmonicamente com ela. Admitia a existência de um princípio vital mais profundo presidindo as manifestações da flora, da fauna e das forças cósmicas. A religião era um instrumento adequado para entrar em comunhão com essas forças divinas. A segunda matriz, de caráter mais transcendental da existência humana, foi a do Catolicismo Romano, religião oficial do Estado Lusitano e que foi imposta a indígenas e negros, do que resultou o sincretismo afrocatólico. Como resultado desse processo coercitivo e seletivo, tivemos um panteão de deuses no Tambor de Mina composto por Santos católicos, Voduns da tradição do Daomei, a exemplo de Verequete, que vem a ser pai da entidade Herondina; Orixás africanos de tradição Nagô da Nigéria, seres da natureza divinizados pela mentalidade animista indígena; e personagens históricas como o Rei Sebastião, pai da entidade Jarina que, dada essa filiação, é cantada no ritual como “moça nobre”. E, ainda, temas do folclore ibérico e dos festivais religiosos como as mouriscas, que comemoravam as cruzadas medievais de cristãos contra mouros na Península Ibérica. No Brasil os mouros foram chamados de turcos, e surgiu no panteão do Tambor de Mina a extensa família do Rei da Turquia, à qual pertence a popular entidade Mariana”, explica a professora Anaíza, com a autoridade dos seus trinta anos de docência de Antropologia na UFPA, mais o período, já aposentada nos anos 90, lecionando Antropologia Cultural da Amazônia para o ciclo de Filosofia e Religiosidade Popular no curso de Teologia, em que bebeu na fonte dos clássicos da História Comparada das Religiões, da Fenomenologia Religiosa e da nova área de conhecimento das Ciências da Religião, sem perder o foco no largo espectro das denominações religiosas de origem ou influência africana.

Mestra em Antropologia Social, pesquisadora das religiões afro-brasileiras no Pará, conselheira titular do Conselho Estadual de Cultura do Pará, Anaíza Vergolino conta que, nesse conjunto, excetuando os Santos católicos, todos esses personagens e seres são referidos como Encantados, designação comum aos importantes seres do Tambor de Mina e que os vincula à pajelança amazônica porque os Encantados são seres animados por forças sobrenaturais que lhes permite assumir formas humanas mas também formas animais, como ocorre com as três princesas turcas após a passagem pelo Portal da Encantaria Amazônica Paraense.

Ao expor as diferenças entre o Tambor de Mina e o Candombé e a Umbanda, Anaíza acentua que os Encantados da categoria dos Caboclos não são espíritos de indígenas mortos e tampouco encarnam aqueles seres “selvagens” e “primitivos” vestidos de penas, como são representados na Umbanda sudestina. Ainda que sejam brasileiros, os Caboclos da tradição Mina têm preferencialmente uma “dupla nacionalidade”, podendo ser brasileiros e turcos, franceses, africanos ou paraguaios. O que faz a tradição Mina paraense se vincular à Mina maranhense, ambas se distinguindo, ao mesmo tempo dos Caboclos da tradição baiana, em que no panteão só existem duas tipologias, os Caboclos de Pena e os Boiadeiros.

“Quanto aos Encantados da categoria dos Senhores vamos encontrar no Tambor de Mina uma série de personagens com status de nobreza, como sejam Reis, Duques, Barões, Marqueses, alguns personagens da história portuguesa e europeia datada. São os ” Nobres”, também referidos como “Senhores de Toalha”. Representam a “fidalguia” do panteão. Essa presença vai então aproximar a Mina do Pará com a Mina Maranhense, o que me fez concluir em trabalhos publicados que a tradição paraense deita raízes na tradição maranhense. Em linhas gerais, essa é a tradição Mina do Terreiro Dois Irmãos, que tem forte apelo ao culto dos Voduns da tradição do Daomei. Ao seu lado temos a Mina Nagô, com forte apelo ao culto dos Orixás da tradição da Nigéria. A Escola Grande Rio, ao escolher falar da tradição religiosa afro-paraense ainda presente e viva em uma Casa centenária de Belém, está produzindo um novo conhecimento sobre a cultura religiosa africana no Brasil. Pode parecer pouco, mas não é, pois trata-se de um novo conhecimento sobre a cultura religiosa do Norte do país. Uma página de educação cultural na linguagem carnavalesca”, comenta a pesquisadora, autora da obra “O Tambor das Flores: Uma análise da Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Para”, e de artigo científico nos encartes de dois projetos de etnomusicologia em CDs da Série “A Música e o Pará”, vols. 7 e 8, este último inclusive gravado no Terreiro Dois Irmãos no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 (2002).

Também membro e diretor do Museu do IHGP, o professor doutor Aldrin Moura de Figueiredo, historiador especialista em Antropologia Social e docente da UFPA, salienta que o Tambor de Mina é segredo (cocoriô) da feitiçaria paraense (parauara). Verequete é o vodum mais conhecido no Pará, foi inclusive apelido de um dos maiores mestres de carimbó de todos os tempos, e provém do povo Fon do Benin e da família de ancestral do vodum Quevioço, vive na beira do mar, no lugar onde as ondas quebram formando a espuma branca, sendo assim um vodum ligado às águas salgadas), adotou a primeira princesa turca – Herondina, a “braba” mas também acolhedora.

Aldrin detalha a história cantada na Marquês de Sapucaí: “as princesas encontraram na foz do Rio Amazonas, entre o rio e o mar, a famosa pororoca, visitando os igarapés, desviando das flechas indígenas e dos peixes elétricos (poraquês), os encantados – os Caruanas, seres do “fundo” das águas amazônicas, assim como o boto e a mãe d’água. O samba se refere ao Babaçuê, uma denominação antiga como se referia a Mina do Pará, especialmente em referência ao célebre terreiro de Satiro Ferreira de Barros, visitado por Mário de Andrade, na viagem que fez a Belém em 1927. A macaia codoense é referência ao axé de Codó, epicentro da tradição do terecô maranhense, quando Mina se junta com a pajelança amazônica e chega até à macumba carioca através da Grande Rio. A falange dos turcos então se “ajurema”, dançando (baiando) ao som do tambor do curimbó (o tambor afro-amazônico do carimbó).

O pesquisador frisa que as referências às ervas estão tanto na pajelança de pena e maracá como no tambor de terreiro, com os perfumes tradicionais tão característicos na cultura paraense trazido pelas águas de cheiro de Nossa Senhora de Nazaré (que no Tambor de Mina é “adorada” por uma princesa chamada Sinhá Bê, mas também é pela vertente “Mina-Nagô” associada à Oxum, com toda a mística do “lírio mimoso”).

“O refrão é uma exaltação aos caboclos amazônicos e aos Voduns jeje e os Orixás nagôs trazidos na diáspora africana para o Antigo Grão-Pará, provenientes da Costa da Mina (Forte de São Jorge da Mina, na Guiné, de onde vieram especialmente escravizados de cultura fon. Temos que lembrar que o Reino do Daomé da África Ocidental, localizado no atual Benim, existiu de aproximadamente 1600 até 1904. Se desenvolveu no Planalto de Abomei entre os Fons no início do século XVII e tornou-se uma potência regional no século 18, expandindo-se ao sul para conquistar cidades-chave como Ajudá, pertencentes ao Reino de Ajudá, na costa atlântica, o que lhe garantiu acesso desimpedido ao comércio triangular tricontinental para o Brasil, com influência especial para a cultura religiosa do Maranhão e do Pará)”, esmiuçou Aldrin Figueiredo.

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