Gregório Samsa, depois de acordar com sonhos inquietantes em certa manhã chuviscosa, deu-se por transformado num gigantesco inseto. Envolto em uma couraça, parecendo aço, suas pernas eram miseravelmente finas, agitando-se desesperadamente na cama. Achou que sonhava e cogitou voltar a dormir para verificar se aquilo não passava de um sonho.
Na realidade havia virado uma imensa barata e sua maior preocupação não era a sua transformação em inseto, mas sim a de que chegaria atrasado para o trabalho com o qual sustentava a mãe.
Assim começa o famoso livro do tcheco Franz Kafka, “A Metamorfose”, escrita em alemão em apenas vinte dias do ano de 1912, publicada em 1915, considerado um dos maiores labirintos literários da realidade humana.
A história narra a angustia do personagem em meio a um drama familiar vivido por Gregório que, tornado inseto, se depara com o pai que lhe atira maçãs nas costas, uma delas encravando em suas costas, ameaçando-lhe a vida ao apodrecer.
A mensagem de “A Metamorfose”, entre várias, é a hipocrisia que domina a humanidade, sob uma grande carapuça de máscaras utilizadas todos os dias, traçando marcos diferenciais entre os seres humanos em suas condutas.
Metamorfoseado, Gregório é excluído do sistema de relações humanas, extraindo-se sua dignidade, impondo-lhe o isolamento compulsório que Hannah Arendt afirma como solidão na esfera dos contatos sociais.
Vivemos, atualmente, realidades desse tipo, entre desencontros pessoais, institucionais e políticos, comprometendo a estabilidade social e a evolução da própria condição humana que precisa perceber muito mais a funcionalidade da existência.
Vivemos a ilusão dos próprios sentidos, imersos na realidade da mentira e da dificuldade da compreensão do substancial humano. Vivemos a transformação da barata, sem a percepção da maçã apodrecendo em nossas costas, transferindo nossas angústias e ansiedades para outros dorsos. Mais fácil atacar do que se defender, mais fácil reagir do que compreender, mais fácil desacreditar do que acreditar, mais fácil infelicitar do que felicitar.
Um dia visitei o novo cemitério judeu em Zizkov, Praga, República Tcheca, novo porque o mais antigo, intitulando uma das obras de Humberto Eco, é quase milenar. Andei por todos os labirintos que havia naquele dia gélido com ventos cortantes, isolado naquele lúgubre parque até encontrar o jazigo familiar da família do escritor, onde está sepultado Kafka.
Em sua lápide, como é costume em vários países da Europa, haviam pedrinhas enfileiradas colocadas pelos visitantes, ao lado das quais deixei outras formando uma interrogação. Penso que Franz Kafka funda um universo literário de sentidos morfológicos, onde a realidade se desnuda, entre sujeito, ficção, incerteza e criação, em planos sublimes desde a mais sutil origem e enigmáticos resultados.
Li trechos dos originais do escritor no temático museu montado em Praga, tentando interpretar sua inspiração entre a língua alemã e a tcheca, levantando pontos de sua vida que o induziram a produzir tantos arquétipos de natureza conflitiva dos humanos.
Seus labirintos, constituídos por metáforas, almas e corvos, são dignos de reflexões de vida. O termo “kafkiano”, utilizado em várias línguas para descrever conceitos e situações que remetem a mistérios e perplexidades subjugando pessoas, direitos, humanidades, como em “A Metamorfose”, é a revelação da interrogação que vivemos em nossas relações sociais cheia de complexidades.
Comentários