Escrevi, certa feita, que Deus resolveu criar o tempo e que resolveu que o tempo haveria de passar. E assim, ao fazer passar o tempo, Deus criou o passado e com ele criou também as memórias, as histórias e a arte de contá-las. Talvez fosse o caso de ter parado por aí, dotando o homem do poder de registrar os fatos em sequência, organizando cronologicamente o arquivo da vida. Isso já seria de grande valia, eis que ao armazenar e ordenar informações, o homem aprende a evitar o erro.
Não por acaso Karl Popper, um dos grandes filósofos liberais do Século XX, conceituou a ciência como um fenômeno biológico que decorre de três eventos sucessivos: o problema, as tentativas de solução e a eliminação das tentativas incorretas. Assim, a capacidade de aprender e de eliminar conscientemente os erros verificados nas investidas já feitas, transforma o homem no único animal capaz de aplicar o método crítico.
Popper usava uma figura curiosa para melhor ilustrar sua teoria. Dizia ele que o que diferencia o homem de uma ameba é exatamente a capacidade de aprender, de acumular experiências e de afastar a possibilidade de errar novamente ao enfrentar problemas já conhecidos.
Tenho minhas dúvidas sobre a tese do filósofo austro-britânico, a um porque determinados homens provam diariamente que o que mais lhes distingue é a capacidade de errar, de insistir no erro e de repeti-lo à exaustão; a dois porque é incontestável que certos animais também parecem acumular conhecimento e utilizá-lo em prol da sobrevivência. É o caso, por exemplo, de qualquer vira-lata que perambule pelas ruas de Belém, única cidade do mundo em que essa espécie canina olha em todas as direções e faz uma varredura de 360 graus antes de atravessar a rua, afinal nunca se sabe de onde pode surgir um motoboy tresloucado, daqueles que cobrem as placas das motos com pedaços de papelão.
Ocorre que Deus não parou por aí, não se contentou em dotar o homem do poder científico e metodologicamente organizado de tratar o passado. Deus foi além, muito além, e junto com o passado resolveu criar a saudade, incutindo em nós o mais belo dos sentimentos, a mais profícua das sensações, qual seja a capacidade de amar aquilo que já não temos mais, que já não nos cerca, que já mora no tempo que ficou para trás, ou aquilo que mesmo sendo nosso encontra-se distante de nós.
Vale registrar, ainda, que nesse particular Deus foi especialmente generoso com o povo lusófono, pois apenas na língua portuguesa existe esse poema de uma só palavra. Deve ser por isso que não há no mundo quem sinta saudade com a beleza lírica dos portugueses e dos brasileiros – “Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal…” (Fernando Pessoa); “A saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu…” (Chico Buarque).
Fico a imaginar o que seria do homem sem esse laço indissolúvel com o passado e com a distância, com essa verdadeira exaltação da memória. Por certo não seríamos os mesmos, sem dúvida seríamos menores. Ter saudade, sentir saudade, é parte imprescindível da vida, é estar atado afetivamente ao passado que, ao fim e ao cabo, é tudo o que temos até aqui, tudo que nos construiu, os momentos vividos, as pessoas que amamos, o caminho que percorremos.
Rubem Alves, educador, teólogo, psicanalista e pastor cuja leitura recomendo fortemente (há vários de seus livros disponíveis na internet), escreveu numa crônica chamada “Comemorar, recordar” (O Deus que conheço, Ed. Planeta, SP/2019), que “dentre todos os seres vivos, os seres humanos são os únicos que se alimentam do passado. Eles comem aquilo que já deixou de existir (…) Por fora, no mundo cotidiano do trabalho, estamos em busca de coisas novas. Mas a alma, nas penumbras em que mora, vive à procura de coisas velhas. Alma é saudade. Saudade é a inclinação da alma na direção das coisas amadas que se perderam. Foram perdidas e, a despeito disso, continuam presentes como dor.”
Nada mais verdadeiro, nada mais sublime, sobretudo quando escrito com tanto talento e tanta verdade. Saudade é alimento, ajuda a nos manter de pé, e temos que ser gratos a Deus por isso, afinal vem da generosidade do Criador a dádiva de podermos nos dividir, de podermos provar um gostinho da Sua onipresença, estando em vários lugares ao mesmo tempo. O nome disso é saudade.
Nos é dado viajar, ir para longe, mudar de cidade, mas parte de nós sempre vai repousar no colo da mãe, no abraço do pai, na casa dos avós. Parte de nós sempre vai habitar a terra natal, os dias da infância. Parte de nós sempre vai estar povoada pela vida daqueles que amamos. Pessoalmente posso dizer que tenho viajado com alguma frequência, muitas das vezes sozinho ou apenas com minha esposa, já que o calendário escolar dos filhos restringe ao fim do ano os passeios em família, e posso assegurar que parte substancial da beleza que encontro nestas viagens reside na saudade que as permeia, que me acompanha e que me prende àquilo que deixei em cada partida.
A ausência dos filhos é uma presença constante, chega a doer, inobstante os vastos recursos tecnológicos da atualidade ajudem a atenuar essa dor. Saudade da mãe, saudade da casa e do cachorro, saudade dos amigos, saudade da rotina, todas essas saudades vão e voltam comigo, sempre, e estão na categoria das saudades que podemos matar, por assim dizer. Outras são perenes, imortais, e vão conosco até o fim dos nossos dias, como é o caso da saudade que tenho de meu falecido pai, dos meus dias de menino no Mosqueiro ou de carregar os filhos nos braços quando eram pequeninos. O que nos cabe é compreendê-las como parte de nós, extraindo delas a beleza que ocultam, e para isso recorro uma vez mais ao Rubem Alves, em quem encontrei a bela fábula com que encerro a crônica de hoje:
“Um homem dilacerado pela dor da saudade da mulher amada, que falecera há pouco tempo, recorreu aos deuses em desespero, pedindo que a devolvessem. – A morte é mais forte que nós, responderam os deuses. – Não podemos devolver o que a morte levou. Mas podemos pôr fim ao seu sofrimento. Podemos fazê-lo esquecer a sua amada. Podemos curá-lo da saudade… Horrorizado o homem respondeu: – Não, mil vezes não! É o meu sofrimento que a mantém viva junto de mim!”
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