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Este texto é sobre Plano Diretor, mas também é sobre voltarmos à nossa essência.

Pela lei, toda cidade com mais de 20 mil habitantes precisa ter um Plano Diretor Urbano. É nele que se define quanto pode ser ocupado nos terrenos, a altura máxima dos prédios, os tipos de uso do solo e as regras para construção. Na prática, porém, isso alcança apenas parte de Belém: 57% da cidade é composta por moradias precárias, autoconstruídas, que não seguem os padrões da legislação — e é justamente esse dado que algumas lideranças políticas têm usado para atacar a escolha de Belém como sede da COP30.

Mas aqui ouso provocar: esses 57% de área precarizada — me recuso a chamar de “favelizada” —, onde os bairros escapam do controle rígido do Plano Diretor, trouxeram em certos aspectos vantagens que estamos gradualmente perdendo. Afinal, os Planos Diretores brasileiros nasceram sob forte influência modernista, com segregação de usos e um urbanismo centrado no automóvel. Não fomos os únicos: no pós-guerra, muitas cidades industriais do mundo seguiram a mesma lógica — até perceberem que ela não funcionava.

A partir dos anos 1990, surgiu um movimento global de retorno à escala humana. Nasceu o Novo Urbanismo, que prioriza cidades caminháveis, densas e vivas, preocupando-se mais com a forma do que com a regulação. De certa maneira, é um reencontro com a Belém da época de Antônio Lemos.

Hoje, esse movimento inspira conceitos como Cidades Felizes, Cidades de 15 minutos e Cidades Brincáveis. E é justamente aqui que Belém pode encontrar um caminho: enxergar o Plano Diretor não como uma imposição moderna, mas como uma oportunidade de recuperar sua essência.

Na minha geração, brincar na rua era regra. Descalço, passava as tardes correndo até o que eu considerava “tarde da noite” — provavelmente umas 20h. O princípio das cidades brincáveis é simples: ruas seguras para que crianças possam brincar, jovens convivam e adultos se entretenham. E isso já foi cotidiano no centro de Belém, permanecendo ainda hoje nas periferias, onde mesmo sem praças ou parques formais, as crianças jogam bola, empinam pipas e brincam de elástico.

Em muitos desses bairros, os próprios moradores limpam terrenos baldios, instalam mesas para jogar damas e criam espaços de encontro. No entanto, à medida que avançam os projetos de urbanização, esses lugares cedem espaço ao asfalto — e, consequentemente, aos carros. Lembro que nas minhas conversas com o Ítalo Abati no ano passado essa era uma preopucação constante em relação ao nosso futuro enquanto cidade: O risco é repetirmos nas periferias o mesmo processo que afastou a vida das ruas do centro, mas sem o contrapeso de equipamentos públicos como a Praça Batista Campos ou o Horto Municipal.

É preciso rever nosso modelo de desenvolvimento urbano. O asfalto em áreas estritamente residenciais não resolve: aumenta o calor, intensifica a violência ao esvaziar os espaços públicos e empurra as pessoas para dentro de casa — justamente quando mais precisamos de ruas vivas.

Voltar à nossa essência significa valorizar o que já temos: uma cidade com forte vocação para a convivência, para o encontro e para o brincar. Belém pode — e deve — se colocar como modelo de cidade do futuro. Uma cidade que, mesmo sem se dar conta, sempre esteve à frente do seu tempo.

Acilon Cavalcante
Arquiteto e urbanista apaixonado por cidades, histórias e pessoas. Tem mestrado em Artes, mestrado em Arquitetura e é doutorando em Mídias Digitais pela Universidade do Porto. Premiado em projetos de planejamento urbano, já atuou com governos e ONGs no Brasil, Canadá e Portugal, sempre conectando urbanismo, design participativo e sustentabilidade. Gosta de transformar dados em ideias e ideias em cidades mais humanas.

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