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Nunca, em trinta e oito anos de presença do autor deste artigo no Marajó, este se encontrou em níveis mais baixos em dignidade humana e na sua condição de cidadania.


Estatísticas estarrecedoras sobre o desprezo sistemático da condição humana, da cidadania real da sociedade tão peculiar como a marajoara, a partir precisamente das próprias Instituições da República nesta região, levantam vozes de alerta máximo que ecoam quase obsessivamente na consciência de muitos.


A indiferença globalizada das nossas autoridades diante dos fundamentos constitucionais arrancados a uma sociedade como a do Marajó, que se proclama brasileira e que evidentemente nestas condições não tem futuro, e nem horizonte, causa estupor, apreensão e angústia.


A partir daí o descrédito e a perda da confiabilidade básica nas autoridades constituídas aquele constitui um dos elementos mais importantes da demolição de um conjunto humano tão valioso e ao mesmo tempo tão frágil como o do Marajó.

Um Marajó sem trabalho e, portanto, sem valores humanos essenciais que daquele decorrem, um Marajó sem dignidade, com desemprego estrutural e sem possibilidade de livre iniciativa, num contexto de escravidão e dependência indigna de seres humanos, de brasileiros criados à imagem e semelhança de Deus se constitui numa vergonha nacional.

Numa palavra, um Marajó fantasma, não refletido de modo algum e não identificado, portanto, com a exigência fundamental. E dizer, um grupo humano atípico, não classificado como parte da República do Brasil.

O prazer de dominar, a fome sagrada e infinita de dinheiro, o sistema do pão e da festa até a exaustão perpetuam entre nós a tradição colonialista e suas perversões exportadas e importadas no Marajó.

Por exemplo, a angústia diante do abandono de Anajás no centro geográfico do Arquipélago nas mãos do comando vermelho e do comando da capital, com o enfrentamento heroico por parte de alguns brasileiros autênticos, sufoca o grito por liberdade da população anajaense, oprimida e silenciosa.
O esquecimento do município mártir de Portel (80mil habitantes), com ausência de Promotor de Justiça titular. Eis Bagre, o império da impunidade, o município torturado pela escravidão imemorial, a ilegalidade, a desordem pública e o terror…


Anajás, Portel e Bagre dentro do caos estabelecido em todo o Marajó se desumanizam de modo acelerado e especialmente na perseguição e na caça sistemática à criança, à jovem e à mulher.
Olhando atentamente para este Marajó torturado e atormentado constatamos a escassa confiabilidade no funcionamento eficaz e garantido das Instituições públicas. Constatação que se impõe a modo de impactos a cada dia suportados pela população.


Assim, por exemplo, a denúncia nos meios de comunicação da falta de ética fundamental da Delegada de Bagre, senhora Vanessa Macedo. Uma denúncia comprovada, com abundância de fatos e cargos gravíssimos mereceu do presidente da Associação dos Delegados do Estado do Pará, Sr. Moraes, uma resposta em que este não se digna ter um mínimo de capacidade de autocrítica através de uma comunicação altamente moralista e paternalista até irritar.

Todos os que conhecemos o Marajó sabemos de Delegados exemplares, orgulho legítimo da Instituição, defensores decididos da justiça e da paz cidadã. Por outra parte, conhecemos também alguns delegados medíocres, sem dignidade e de baixa qualificação humana.


Por que não cortar na própria carne, Delegado Moraes, com todo o respeito, quando é necessário?
Todo ser humano, qualquer Instituição está marcada pela fragilidade e pelo possível broto de atitudes profundamente desumanas que colocam em risco as pessoas que nos circundam, também na benemérita Instituição dos Delegados. Todos pecamos e todos necessitamos da Glória e do perdão de Deus… Todos!

Sua declaração, Delegado Moraes, é um descrédito para a Instituição que representa. Sem dúvida muitos dos seus colegas se sentem envergonhados diante dessa declaração.
Por outra parte, o povo de Bagre, a quem o Sr. se dirige de modo especial e enfático, sabe muito bem que as suas afirmações não correspondem à realidade. Delegado, o povo de Bagre tem medo! Assim como outros muitos neste imenso Marajó.


Por último, de onde nasce essa audácia para afirmar que a Delegada Vanessa tem sido atacada por aqueles que não querem respeitar a lei?


Quem é que não respeita a lei, Sr. Moraes?


Diante das ruínas da cidadania, da ética e da cultura em Bagre, a sensação que se experimenta é a da existência de um projeto perverso de envilecimento e abjeção, tendo sido desenvolvido faz longo tempo e de formas variadas, muito sutis, outras escancaradas, contra os cidadãos marajoaras e ainda perpetrado diante de nossos olhos, que não é de hoje e que se impõe pela evidência dos fatos. Um projeto em definitivo orientado para a dominação destas terras e águas do Marajó através de um processo de subtração e rapto da consciência e da dignidade humana. Uma espécie de controle dos fundamentos mais íntimos da estrutura do ser humano onde o selo e a marca do próprio Deus estão gravados de modo indelével.


Algo assim como uma voz fácil de ser identificada através de atitudes, gestos, programas, conceitos e palavras como: “Tu, marajoara, és imprestável; és completamente inútil; és incapaz de construir tua própria história; convence-te de uma vez de que a tua condição é a de escravo, e portanto sempre necessitarás de um instrutor e um militar”.

Ondas e ondas de envilecimento sistemático com emissões obsessivas e degradantes tendentes à demolição da consciência, da dignidade de seres humanos durante séculos, têm levado o Marajó a uma negação de si mesmo, uma renúncia ao ser com uma opção forçada pelo não ser. Esta é a suprema abjeção imposta, o jugo insuportável colocado nos ombros do nosso Marajó: “Não existo, não sou pessoa…”

Paz! Paz! Assim grita no Marajó o falso profeta. “Mas não havia paz”, clama o Profeta Jeremias.
E agora, profeta, estes ossos ressequidos poderão erguer-se da tumba e viver? “Tu o sabes, Senhor”. E tu, a voz que trabalhas com o que não existe, grita, grita agora: “Marajó! Despe a veste de luto com que te recobrem os teus algozes. Começa a remover de ti o verme abjeto que corrói a tua mente e a tua liberdade. Quebra de uma vez o jugo insuportável e sai ao campo e às águas. Marajó, tu existes! Tu estas viva, Bagre! Tu podes pensar por ti mesma. Tira de ti de uma vez o manto que te sufoca e esmaga com teu próprio pé esse verme que não cansa de repetir “Tu és um escravo, Marajó, sempre o foste e esse é o teu destino!”.

Marajó, as instituições sob as quais te arrastas como um réptil não são eficazes para ti. São estranhas, não tens por que ter medo delas, Marajó. Abre os olhos, podes abri-los! Não temas! Teus olhos mostrarão quem são os teus aliados, aqueles que te respeitam e te consideram, também dentro das Instituições republicanas.


Assim poderás enxergar tu mesmo, Marajó, também quem são aqueles que adoram prostituir-te, ver-te jogado na beira cinzenta da história, aquela velha história de lamentação eterna, de mesmice, aquela que te ensinaram a modular e na qual te a doutrinaram longamente: “Tu não és. Deixa-nos colocar o jugo nos teus ombros. Assim poderás sobreviver. Somente assim!”

Grita, Marajó! Grita! “O que vou gritar?” Quero liberdade, quero viver, quero existir. Não mais quero surfar na imundície social, na correnteza que me varreu e me arrastou a não pensar.


Quero entrar nas águas profundas da resistência e defesa da minha dignidade e da minha coerência cidadã diante do Deus vivo! Nunca mais diante dos deuses mortos que exigem sacrifícios aos seus mortos.


Quero nadar, quero nadar até a beira segura da solidez de uma consciência humanizada, de um homem que conhece e reconhece sua condição de filho de Deus, ainda não arrancada pelos colonizadores e predadores! Desejo me amarrar na âncora da esperança que me foi recuperada, uma esperança como posse e motivação para enfrentar todas as contradições e batalhas.


Não tenho outro Deus senão esse Deus da esperança. Ele é meu Pai! Não necessito me aviltar e nem ser um escravo. Ele é meu libertador, o único. Não quero nenhum outro. Assim não permitirei ser mais manipulado e forçado a adorar os deuses mortos da tirania, do dinheiro sem dignidade e do prazer insensato e bobo.


Senhor Governador, Senhor Delegado Geral, já é hora de que as autoridades do Pará saiam das declarações para os fatos e das promessas para o compromisso. Excelências, Bagre é um município amedrontado. A defesa que neste momento proporciona a Constituição Brasileira está em questão pelos acontecimentos que continuam a desenrolar diante de toda a nação e com amplíssima repercussão na mídia. É hora de agir.


Ameaças como: “Eu tenho dinheiro para te mandar matar. Tu não tens dinheiro para mandar matar a mim”, denuncia uma situação insustentável.


Excelências, tanto a ordem pública como a paz social estão de fato gravemente comprometidas e ameaçadas no município de Bagre e com o perigo iminente de uma profunda desestabilização social, como é evidente e como os fatos o confirmam. No espírito da Constituição Brasileira isto pareceria exigir a decretação do Estado de Defesa. (CB art.136. 141).Sem entrar em casuísmos, a situação presente exige uma tomada de medidas drásticas e eficazes para manter a segurança pública.


A indecisão, a passividade e os silêncios perpetuam o pânico na população e abrem para um futuro incerto e ameaçador!


Soure, 12 de julho de 2023


Dom José Luís Azcona Hermoso

Bispo Emérito da Prelazia do Marajó

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