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Todo ano a novela se repete. O título poderia ser “Inferno na praia”. Com muito acerto o juiz titular da Vara Única de Salinópolis (PA), Antônio Carlos Moitta Koury, deferiu a Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público do Pará em face do Estado, município e Ideflor-bio, pela necessidade de coibir práticas lesivas ao meio ambiente, sobretudo poluição sonora e acúmulo de resíduos sólidos nas praias do Atalaia, Farol Velho e Ponta da Sofia, pelas chamadas “carretinhas” e “paredões sonoros”, que prejudicam a fauna local, a desova de tartarugas marinhas, bem como a ordem pública, diante do aumento de crimes e do caos no trânsito. Pois o prefeito de Salinópolis, Kaká Sena (PP), inconformado com o sossego, interpôs Agravo de Instrumento perante o Tribunal de Justiça e hoje (5) a desembargadora Ezilda Pastana Mutran permitiu “carretinhas”, torres sonoras e equipamentos similares nas praias do Atalaia e Farol Velho, entre as 18h e as 6h, proibido apenas o acesso de tais terrores à Ponta da Sofia. A decisão pode – e deve! – ser revista com urgência.

O norte-americano Gordon Hempton, ecologista acústico, deu a volta ao mundo três vezes nos últimos 41 anos documentando as paisagens sonoras naturais que estão desaparecendo. Ele se encolheu dentro de um tronco oco de conífera Picea sitchensis no noroeste do Pacífico para gravar “o mais belo violino do mundo”; flutuou em uma canoa pelo rio Amazonas para registrar o gorjeio melódico de aves migratórias raras; e ganhou um Emmy por seu documentário The Vanishing Dawn Chorus, que captura a cacofonia do amanhecer em seis continentes. O som que Hempton está mais preocupado em preservar é o mais ameaçado de todos: o silêncio. “Quando você salva o silêncio acaba salvando todo o resto também”, afirma o especialista, idealizador da Quiet Parks International (QPI), primeira ong a certificar e preservar as últimas paisagens sonoras naturais da Terra da barulheira causada pela humanidade, por meio do “turismo silencioso”. Ao inspirar os viajantes a despertar para as maravilhas sonoras do planeta, tenta salvar o silêncio em benefício de todas as vidas.

O barulho é uma ameaça insidiosa. E não é só irritante. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, os efeitos da poluição sonora incluem ataques cardíacos, aumento da pressão arterial, derrames, diabetes, surdez, demência e depressão, entre outros males gravíssimos. Relatório publicado na revista científica The Royal Society’s Biology Letters mostrou que a poluição sonora ameaça a sobrevivência de mais de cem espécies animais diferentes. Os bichos dependem do som para tudo, desde encontrar um companheiro, migrar, caçar e evitar predadores. Debaixo d’água, onde o som viaja mais rápido e mais longe do que em terra, a situação afeta inúmeras espécies de vida marinha, de acordo com a literatura científica. Seres humanos e cardumes inteiros desenvolvem estresse, perda auditiva e doenças crônicas.

O som da natureza acalma, ancora e cura. Em 2021 a ong de Hempton nomeou o Parque Nacional Yangmingshan de Taiwan — espaço de 11.338 km² de fumarolas sibilantes, florestas antigas e colinas verdejantes nos arredores de Taipei — seu primeiro Parque Urbano Silencioso. Nas culturas orientais, ‘silêncio’ é um estado de ‘unidade com todas as coisas’, o mais alto estado de sabedoria”, explica Laila Chin-Hui Fan, fundadora da Soundscape Association de Taiwan, que defendeu a designação do parque. “Ao mesmo tempo, também é profundamente transformador.” Começaram a notar a cadência dos pássaros, o farfalhar das folhas, “a trilha sonora do planeta e o think tank (centro de estudos) da alma”. No mesmo ano a QPI designou o Hampstead Heath, em Londres, seu segundo Parque Urbano Silencioso, seguido por cinco reservas naturais em Estocolmo e a seu redor (Judarskogen, Hansta, Älvsjöskogen, Kyrkhamn e Sätraskogen). The Ramble, a paisagem florestal de cerca de 14 hectares no Central Park, em Nova York, está cotada para ser o primeiro parque designado pela QPI nos EUA, seguida pela Reserva Natural Armand Bayou de Houston, no Texas. Haverá também Parques Urbanos Silenciosos em Caen, na França; Bruxelas, na Bélgica; e Villach, na Áustria. A QPI também está desenvolvendo Parques Marinhos Silenciosos e Trilhas Silenciosas.

O MPPA juntou laudos, registros fotográficos e informes da Polícia Militar, atestando o agravamento dos problemas ambientais e de segurança nesta época em Salinópolis. O tema já foi exaustivamente explicado e é conhecido por todos. É tão absurdo e desprovido de razoabilidade o argumento do prefeito que igualmente é espantoso o acatamento dele. Afinal, qual seria o impacto negativo dos sons da natureza sobre a economia local, o prejuízo ao direito de ir e vir e ao trabalho dos pequenos comerciantes e trabalhadores informais que dependem do fluxo turístico nas praias de Salinópolis?

Então o dever de preservar o meio ambiente, a vida em todas as suas formas, a saúde humana e animal e a segurança pública, todos direitos humanos, fundamentais e de cidadania protegidos pela Constituição, pode ser ignorado?! A própria decisão da desembargadora enfatiza: “conforme amplamente documentado nos autos e reconhecido por autoridades ambientais, das cinco espécies de tartarugas marinhas presentes na região, quatro constam em listas oficiais de animais em risco de extinção, o que demanda máxima proteção e vedação de qualquer atividade que possa perturbar, direta ou indiretamente, os ciclos reprodutivos desses animais, sobretudo nas áreas de desova e entre as dunas”. Não se tem conhecimento de um paredão invisível a bloquear com revestimento acústico o som tormentoso das tais “carretinhas” e torres sonoras que fiquem ao lado da cerca demarcadora da Ponta da Sofia. Ademais, as praias do Atalaia e do Farol Velho são Áreas de Proteção Ambiental Integral, assim definidas em lei.

Espera-se que o TJPA examine com urgência a questão e proteja o ecossistema, como também os seres humanos que têm direito constitucional de ir à praia para ouvir as ondas do mar, o canto dos pássaros e o som do vento, nunca para serem torturados com barulho enlouquecedor.




Foto: Vinicius Leal
Foto: Vinicius Leal
Franssinete Florenzano
Jornalista e advogada, membro da Academia Paraense de Jornalismo, da Academia Paraense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, da Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo e do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, editora geral do portal Uruá-Tapera e consultora da Alepa. Filiada ao Sinjor Pará, à Fenaj e à Fij.

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