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O movimento surrealista proclamado pelo poeta André Breton em 1924, desenvolveu a ideia de manifestação artística que está além da realidade, valorizando o onírico, o irracional, em sintonia com a psicanálise elaborada por Sigmund Freud, ou seja, sem qualquer vigilância dos padrões de racionalidade, o que privilegia a profusão do estado de sonho, do fantástico. Salvador Dalí, Luis Buñuel e René Magritte e outros artistas surrealistas adotaram a contradição, o estado de inconsciência como norma para a produção de imagens simbólicas, chocante, surreais. 

O cinema, forjado da junção entre arte e indústria, oportuniza a prática da escola surrealista ao se distanciar da narrativa tradicional para que o espectador possa adentrar em mundos imaginários por meio dos trabalhos de artistas diversos como Man Ray (“A Estrela do Mar”, 1928); Luis Buñuel em parceria com Dali (“Um Cão Andaluz”, 1929); Mario Peixoto (“Limite”, 1931); Jean Cocteau (“Sangue de um Poeta”, 1932); Kenji Mizoguchi (“Contos da Lua Vaga”, 1953); Alejandro Jodorowsky (“A Montanha Sagrada”, 1973); David Cronenberg (“Videodrome”, 1983); Spike Jonze (“Quero Ser John Malkovich”, 1999); Terry Gilliam (“O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus”, 2009); Guillermo del Toro (“O Labirinto do Fauno”, 2006); Michel Gondry (“Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, 2004); Darren Aronofsky (Mãe!, 2007), entre outros clássicos da cinematografia surrealista.

Porém, há uma filmografia que chama atenção: os filmes autorais dirigidos pelo cineasta americano David Lynch (1946/2025), que traz para a tela a atmosfera de sonhos e pesadelos com personagens excêntricos e situações bizarras, numa espécie de cinema de horror contemporâneo intricado pela ambiguidade do que é a impressão da realidade e o que é recriação da psique humana.

Depois da experiência adquirida em ensaios visuais em formato de curta-metragem, a estreia de Lynch em longa-metragem é realizada em 1977, dando asas à imaginação com “Eraserhead”, produção experimental sem concessões e fora da curva ao que estava em voga na época com o cinema fantasioso de George Lucas no início da franquia “Guerra das Estrelas”.

Em 1980, a narrativa clássica e a influência expressionista na fotografia preto-e-branco propiciam ao grande público a descoberta da primeira de muitas obras-primas que viriam depois. Julgado por sua aparência em plena Inglaterra vitoriana, “O Homem Elefante” (interpretado por John Hurt), a certa altura do filme desabafa:  Eu não sou um elefante! Eu não sou um animal! Eu sou um ser humano! Eu sou um homem.

Em seguida, o jovem e promissor David Lynch é convidado para dirigir “Duna”, ficção científica de 1984. Sob a pressão mercadológica do produtor Dino De Laurentiis, o resultado foi criticado negativamente pelos fãs do universo literário de Frank Herbet e pela mídia e crítica especializada.

A volta em grande estilo é marcada com a descoberta de um ouvido humano podre nas primeiras imagens de “Veludo Azul” (1986), filme que sinaliza o retorno da estética surrealista e do estilo noir,  opção estética também revisitada por outros jovens cineastas na década de 1980. Aqui, os elementos do filme noir podem ser vistos com a atração do homem comum pelo abismo envolto numa teia de crimes, a namorada perfeita que acompanha as investigações, a mulher fatal, sadomasoquismo, os tipos extravagantes e suas perversões incontroláveis.

Solenemente esnobado na cerimônia do Oscar e laureado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes, “Coração Selvagem” (1990) é o trabalho mais rock and roll de David Lynch, que aglutina as esquisitices dos personagens num filme de estrada aberto para composição ilusionista ao transitar livremente pela narrativa clássica e as vanguardas do cinema mundial.

No mesmo período, a música encantadora de Angelo Badalamenti é utilizada como trilha sonora para a narrativa seriada que consagrou o talento do realizador a um patamar de grandes audiências. Ao valorizar as narrativas paralelas, “Twin Peaks” (1990) é um marco na história da TV americana, com direito às continuações “Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer” (1992) e “Twin Peaks: O Retorno” (2017).

De volta ao estilo road movie, “Estrada Perdida” (1997) investe na visão dupla da narrativa circular, explorando o tema da possessão e personagens macabros num pesadelo de violência exacerbada, Com isso, mobiliza o espectador para o que está além das aparências. O horror de “Estrada Perdida” não foi bem recebido na época de lançamento e hoje é saudado como um dos melhores trabalhos do diretor.   

Em 1999, o estilo surreal do cineasta faz uma pausa para a realização de  “Uma História Real” (1999), filme atípico que se vale da narrativa linear de começo, meio e fim para contar uma história simples: a incomunicabilidade entre velhos irmãos e a aposta de atravessar a América para um encontro que não sabemos ao certo se vai superar mágoas e rancores.

Lançado em 2001, “Cidade dos Sonhos” marca a volta ao universo estranho que é a marca dos filmes de Lynch. Considerado por muitos como o melhor filme de sua carreira, o filme explora a ambiguidade e mudança de papéis nas avenidas de Los Angeles, onde a verdade é outra forma de ilusão. Em meio ao lado sombrio da indústria do cinema e a ensolarada Los Angeles, as personagens interpretadas por Naomi Watts e Laura Harring  são as protagonistas de uma jornada enigmática de vingança, desejo de morte e a dimensão metafísica que provoca medo. Grande filme.   

Em 2006, a estética surrealista sobe o tom e fica mais forte em “Império dos Sonhos”, experiência cinematográfica que desafia o público para uma imersão ao cinema radicalmente experimental, intenso e cheio de camadas misteriosas até o grande final. Considerado o mais enigmático de David Lynch,Império dos Sonhos” é uma profusão de imagens e sons que instigam, provocam o espectador na capacidade de não decifrar por completo de forma imediata, mas participar e construir ligações neste jogo cinematográfico que, a exemplo de “Cidade dos Sonhos”, é repleto de invocações sobre o fazer cinema como obra atemporal a despertar novas considerações no deleite de ter assistido mais uma obra de arte que ficará para sempre na memória do cinéfilo.

A partida do visionário surrealista contemporâneo deixa um legado monumental para a história do cinema e a vontade de ver e rever seus filmes como expansão e mergulho profundo pelos labirintos sensoriais e mundos paralelos assinados pelo cineasta David Lynch.

José Augusto Pachêco
José Augusto Pachêco é jornalista, crítico de cinema com especialização em Imagem & Sociedade – Estudos sobre Cinema e mestre em Estudos Literários – Cinema e Literatura. Júri do Toró - 1º Festival Audiovisual Universitário de Belém, curadoria do Amazônia Doc e ministrante de palestras e cursos no Sesc Boulevard e Casa das Artes.

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