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Milton Nascimento faz sua última sessão de música. Chegar e partir são dois lados da mesma viagem, ele um dia me ensinou, e a cada volta minha ao redor do sol isto causa menos estranheza e mais confusão. O mesmo corpo que vejo falhar, tremer, é o que sustenta a voz mais sublime, aquela que, se não existisse, não escutaríamos todas as coisas lindas que aquilo que não sei entender foi capaz de traduzir. O que importa é nossa essência, dizem os mais espiritualizados. Como partilhar esta essência, entretanto, se não há voz? E quando ela calar?

É muito louco parar pra pensar por que o ser humano criou a música. Ok, podemos baixar este nosso ego e considerar que a música está na natureza, mas referia-me à disciplina, aos instrumentos produzidos com a mão, com as regras matemáticas que organizam o som. Como será que descobrimos nisto uma forma de inesgotável prazer, seja deitados em contemplação, seja dançando como um turbilhão? De tudo se faz canção e o coração na curva de um rio, rio, rio…

Por que nutrimos um sentimento inexplicável por pessoas com quem nunca ultrapassamos certas barreiras da distância, que nunca saberão nossos nomes, nosso tom de voz, e que mesmo assim ocupam um lugar em nossa vida que eu não sou capaz de  descrever de outra forma senão como amor? Por que amamos tanto num mundo que parece ser incapaz de amar? Um amor tão longe de mentiras… Invento o amor? Qualquer maneira de amor vale a pena? Qualquer maneira de amor valerá? Quero a quem quiser me amar?

Éramos uma multidão que se alimentava da energia daquele ser e, claramente, ele também se alimentava de nós. Talvez muito mais do que nós dele. E acho que mesmo quem não pensou muito sobre isso, inconscientemente deu o seu melhor para nutrir de energia aquele senhor que é puro sonho e sonhos – como sabemos – não envelhecem. Acho que nunca serei capaz de descrever o que se passou naqueles momentos, por mais clichê que este testemunho possa ser.

Disseram que Bituca perdeu sua voz, mas mesmo se isto fosse verdade eu poderia passar dias em silêncio ao seu lado e cada segundo seria cheio de música. Música é vibração, é som, é harmonia e melodia. É sim. E música é principalmente tudo aquilo que não precisa ser dito: é o que, por uma mágica impossível de ser explicada, preenche o que nosso vão entendimento chama de alma. Aqueles momentos foram uma conversa particular entre ele e eu. Não sei o que aqueles olhos poderiam processar, só sei que, para mim, era a mim a quem ele podia ver, era o meu eu que ele invadia cada vez que fechava os olhos para cantar.

Não precisa morrer pra ver Deus.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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