Conforme o diâmetro e a velocidade de abertura do diafragma captava-se mais ou menos luz sobre o filme, fina película plástica quimicamente preparada para registrar a imagem que a luz produzia a partir da queima dos haletos de prata, gerando então o chamado negativo. De posse dele, partia-se para um processo de revelação e impressão da cena no papel fotográfico, submetido em câmara escura a três banhos químicos distintos: revelador, interruptor e fixador. Feito isso, e depois da secagem, tínhamos então a fotografia, pedaço palpável de memória, prova e registro físico de momentos importantes que, por variadas razões, gostaríamos de eternizar.
Não sou perito em fotografia, mas a descrição acima não deve estar totalmente incorreta; imagino até que esteja próxima daquilo que a arqueologia identifica como fotografia analógica, autêntica alquimia em que a sensibilidade humana tinha função essencial.
Criar lembranças era trabalhoso, e também não era exatamente barato. Era preciso adquirir as máquinas fotográficas e os filmes, usualmente limitados a 12, 24 ou 36 chapas, das quais nem todas se salvavam, e ainda havia os custos dos laboratórios, agravados na medida em que algumas fotos resultavam em imagens escuras ou claras demais, sem nitidez, cheias de elementos estranhos que ainda não era possível disfarçar – reflexos indesejados, luz estourada, olhos vermelhos e por aí vai.
Mas, enfim, era assim que tornávamos perenes os eventos mais importantes da vida até o surgimento da fotografia digital. Nossas fotos eram feitas de papel, ocupavam caixas, gavetas e armários em envelopes, pastas ou nos memoráveis e adoráveis álbuns que nossas mães montavam e organizavam com maestria e carinho, álbuns que, aliás, costumavam reunir a família em seu entorno quando finalizados, alguns deles com requintes que iam das datas e locais de cada fotografia aos nomes daqueles que nelas estavam.
Pode parecer inacreditável para a geração atual, que capta, armazena e compartilha imagens em quantidade e rapidez inimagináveis até poucos anos atrás, mas nós nos reuníamos para ver álbuns de retratos, recordar as ocasiões em que as fotos haviam sido “batidas” e, de algum modo, reviver as emoções vividas e estampadas naqueles pequenos pedaços de papel.
Havia algo de lúdico nisso tudo, algo de artesanal, de artístico até. As fotos e os álbuns, depois de cuidadosamente preparados, catalogados e organizados, constituíam tesouros do acervo pessoal e familiar, relato histórico de nossos batizados, aniversários e casamentos, registro prazeroso das nossas formaturas e viagens, enciclopédia da vida onde íamos rememorar dias felizes, ocasiões solenes ou simplesmente matar a saudade daqueles que moravam longe ou que já não estavam mais entre nós.
Cada foto era pensada, planejada e orçada. Revelar os filmes demandava um certo investimento financeiro. Era comum, inclusive, quando ainda éramos jovens e, por corolário, mais afoitos, que nossos pais e avós nos chamassem atenção, que “ralhassem“ conosco para evitar o desperdício das poucas fotos que cada filme nos permitia.
Hoje tudo é diferente. Imagens são produzidas aos milhares a partir de telefones celulares repletos de recursos eletrônicos e ferramentas de edição. Fotografar não é mais um ritual; passou a ser um gesto corriqueiro e muitas vezes inconveniente que avilta a intimidade, banaliza as memórias e torna a imagem captada mais importante que o momento vivido. Afora isso, aboliu-se a foto impressa, foram esquecidos os álbuns, diminuiu expressivamente o número de porta-retratos. Nossas lembranças hoje são feitas de pixels, arquivos digitais aptos a conter uma informação individual de cor, e estão armazenadas em dispositivos eletrônicos sujeitos a panes e bugs que podem, de uma hora para outra, colapsar e fazer desaparecer toda uma vida de memórias e registros.
Os nossos antigos álbuns, antes restritos aos familiares e amigos mais próximos, estão hoje expostos ostensivamente em redes sociais em que grassam exibicionismo e ostentação, nas quais a verdade é tão manipulável quanto as imagens e a quantidade tem primazia sobre a qualidade. As doze ou vinte e quatro fotos que guardávamos de cada acontecimento feliz já não são suficientes; é preciso fazer dezenas ou centenas de registros, do espelho do elevador à comida que se vai comer, da atividade física matinal ao “look do dia”. Os cinco ou seis grandes e melhores amigos do passado já não bastam; é preciso ter milhares deles, milhões até, e estes números vazios tornaram-se sinônimo de sucesso, transformando-se em mola propulsora de distúrbios comportamentais e emocionais que crescem em escala geométrica entre jovens e crianças, sem que isso pareça nos preocupar tanto quanto deveria.
Posso estar redondamente enganado, e espero mesmo que esteja. Posso também estar acometido de um saudosismo atroz, ou contaminado pelo medo de envelhecer que costuma surgir após os cinquenta anos. É possível e até provável, mas tenho a impressão de que as nossas antigas fotos eram mais verdadeiras, mais legítimas, continham mais emoção, mais significado e menos artificialismo. Não foi difícil perceber; tive apenas que manusear alguns dos antigos álbuns de retratos da família – não havia neles uma foto sequer que eu pudesse descartar ou deletar sem receio. Em contraponto acessei o arquivo de fotos do meu telefone celular…
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