“A violência, distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde termina a fala”. A célebre frase de Hannah Arendt correlaciona violência e política e é atualíssima. Hoje a jornalista Úrsula Vidal foi preterida na vaga de vice do deputado Igor Normando (MDB), candidato a prefeito de Belém, que anunciou o ex-secretário de Esporte e Lazer Cássio Andrade como seu companheiro de chapa. A homologação será no próximo dia 3, na Arena Guilherme Paraense, o Mangueirinho, durante a convenção que oficializará a coligação “Levanta Belém”, integrada por 10 partidos políticos. Úrsula, que retomará o cargo de secretária de Estado de Cultura, iria fazer a diferença na campanha, em um cenário eminentemente masculino. Agora a única chapa a ter uma mulher na disputa pela prefeitura da capital do Pará é a do deputado federal Eder Mauro (PL).
As mulheres são ampla maioria no Brasil, tanto como eleitoras quanto como chefes de família. Mas têm representação ínfima no Parlamento e no Executivo. Assim também nos altos cargos da iniciativa privada. No Supremo Tribunal Federal só existe uma. E, como sempre as coisas podem piorar, é possível que, a depender dos humores de quem manda, logo a corte suprema seja totalmente masculina.
A Lei das Eleições determina que cada partido político lance, no mínimo, 30% de candidatos de um gênero e, no máximo, 70% de outro, mas os partidos não a respeitam e para escaparem de cassação de mandato, inelegibilidade, multa, devolução de valores e suspensão dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário, tramita no Congresso a PEC nº 9/23, que impede punição aos que descumpriram as cotas. A última versão proposta ao texto original da PEC – vejam só! – reserva 20% das cadeiras do legislativo a mulheres a partir de 2026 e nas próximas eleições municipais, só 15% das vagas. É gritante a desigualdade e ela vai se tornando um abismo.
As mulheres que têm coragem de fazer política viram alvo de repugnantes fofocas, são expostas de forma degradante, ferindo a dignidade humana, tais os termos baixos e irrepetíveis utilizados no claro intuito de destruir a sua reputação e feri-la emocionalmente com requintes de crueldade. A violência política de gênero anda de mãos dadas com a injúria, a difamação, a perseguição e a violência psicológica contra a mulher.
Segue a linha machista: a mulher política tem que ter comportamento angelical. Já os homens podem ter amantes, humilhar, maltratar e espancar suas esposas e filhos e depois ir à missa ou pregar no culto. As mulheres têm seus corpos milimetricamente avaliados e depreciados, os homens cultivam suas barrigas, carecas e gorduras sem problema algum. Podem beber, falar e rir alto, discursar e debater acaloradamente. Se for mulher, é tachada de “alterada”, “nervosa”, “instável”, “desequilibrada” e outros adjetivos asquerosos, sempre diminuindo a condição feminina. Homens podem casar com adolescentes, divorciar “N” vezes. Já a mulher logo é estigmatizada como depravada ou que sustenta o parceiro. Foi assim com todas as mulheres que se destacaram e se destacam na política, a exemplo da presidente Dilma Rousseff (a primeira do Brasil), da governadora Ana Júlia Carepa (a primeira do Pará) e da prefeita de Abaetetuba (PA), a psicóloga Francineti Carvalho, mestra e doutoranda em Psicologia, especialista em Violência Doméstica, em Avaliação Psicológica e em Psicologia Hospitalar (em terceiro mandato e recandidata em um município notório por todo tipo de violência, com 72 ilhas além da sede na parte continental). Em São Caetano de Odivelas, a prefeita Leila Felipa, poeta e professora, é a primeira mulher na história do município a ocupar o cargo. Sua mãe foi a primeira vereadora de lá. Claro está que violência política de gênero é um ataque à democracia e à cidadania, e que precisa ser repelida pela sociedade.
Este ano, mais uma vez, o combate à violência política contra a mulher é um desafio nas eleições municipais. A violência política de gênero é estrutural, naturalizada e camuflada, com presença permanente nas relações sociais. A perpetuação da violência assim é uma forma de calar e barrar conquistas de transformação, de excluir as mulheres dos espaços de poder.
Estudo do IPU e do Pace (Inter-Parliamentary Union and Parliamentary Assembly of the Council of Europe) sobre sexismo, assédio e violência contra mulheres no parlamento de 39 países em cinco regiões e 42 parlamentos concluiu que 81,8% das mulheres sofreram violência psicológica; 46,7% temeram por sua segurança e a de sua família; 44,4% receberam ameaças de morte, estupro, espancamento ou sequestro; e 25,5% sofreram violência física.
No Brasil, os dados são alarmantes. O Instituto Alziras produziu em 2023 o relatório “Mulheres no Poder” e o “Censo das Prefeitas” (mandato 2021-2024), revelando que as mulheres são 51% da população, mas governam só 12% dos municípios. A falta de recursos para campanha e de apoio do partido ou da base aliada, com assédio e violência no espaço político e falta de visibilidade na mídia em comparação aos políticos homens são as principais barreiras que impedem o acesso e a permanência das mulheres na política, especialmente para as prefeitas: 58% delas sofrem assédio ou violência política por serem mulheres.
Importantes alterações foram inseridas no Código Eleitoral no que toca ao combate à violência política de gênero. É crime eleitoral assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, com menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
O título XII na parte especial do Código Penal, relativo aos crimes contra o Estado Democrático de direito, no capítulo III, artigo 359-P, tipifica a violência política como medida que restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça instituiu o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. O Brasil registra a cada trinta dias sete casos envolvendo comportamentos para humilhar, constranger, ameaçar ou prejudicar uma candidata ou mandatária em razão de sua condição feminina. Os dados são do CNJ.
A desqualificação da mulher na política pela indução à crença de que não tem competência para a função que exerce, ou o questionamento sobre a sua vida privada (relacionamentos, sexualidade, maternidade) são atos violentos. As mulheres sofrem misoginia, transfobia, machismo, gordofobia. Vivem experiências cotidianas muito duras, com colegas que chegam a assediá-las fisicamente, como foi o caso da deputada Isa Penna, em São Paulo, apalpada por outro deputado estadual em pleno plenário da Assembleia Legislativa. Divulgação de informações falsas, ataques, ofensas e discurso de ódio nas redes sociais, xingamentos verbais presenciais, constrangimento em função da exposição pública da vida afetiva, familiar ou sexual, chantagens ou tentativas de extorsão, ameaças contra a sua vida, de familiares ou membros de sua equipe, assédio sexual por atitude física ou atitude verbal, agressões físicas são outros exemplos desse horror que precisa ter fim.
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