Publicado em: 5 de dezembro de 2025
O Ministério Público Federal acionou a Justiça Federal para bloquear, de forma imediata, a Licença de Operação concedida pelo Ibama à Petrobras para perfuração no bloco FZA-M-59, na Margem Equatorial. O pedido, apresentado nesta quinta-feira (4), sustenta que o processo de licenciamento ignorou elementos fundamentais da dinâmica socioambiental da costa amazônica e deixou sem proteção milhares de pescadores e extrativistas, sobretudo no Pará, onde se concentra a maior parte dos efeitos logísticos da operação.
A ação descreve uma série de inconsistências técnicas que, segundo os procuradores da República, distorcem a real extensão dos impactos e comprometem a validade da licença. Um dos principais pontos levantados é a ausência de um Plano de Compensação da Atividade Pesqueira (PCAP), mesmo após o próprio Estudo de Impacto Ambiental reconhecer que haverá prejuízos diretos à pesca artesanal em razão da circulação constante de embarcações de apoio entre Belém e a área de perfuração. A falta do plano, segundo o MPF, decorre de um critério considerado ultrapassado, que limita a análise ao entorno imediato do poço, desconsiderando a rota marítima que atravessa zonas de pesca contínua.
Os procuradores destacam que essa interpretação induziu um resultado que classificam como contraditório: o estudo técnico admite efeitos negativos relevantes, mas o licenciamento avança sem garantir mecanismos eficazes de mitigação ou reparação. Para o MPF, essa falha revela um erro estrutural do processo: “A desconexão inaceitável entre os impactos ambientais e socioeconômicos de média e grande magnitude […] e a ausência de medidas de mitigação e compensação socioambientalmente adequadas […] conduziu o processo de licenciamento a uma conclusão paradoxal”, afirmam na ação.
Embora a perfuração ocorra ao largo da costa amapaense, a ação demonstra que os efeitos socioeconômicos recaem majoritariamente sobre o Pará, ponto de partida das embarcações e estado onde se situa a infraestrutura utilizada pelo empreendimento. No entanto, diversos municípios parauaras foram excluídos da Área de Influência, apesar de constarem nos próprios mapas do estudo ambiental como áreas tradicionalmente utilizadas por pescadores que podem sofrer interferência direta do tráfego marítimo.
Entre as cidades deixadas de fora estão Bragança e Augusto Corrêa, cujos territórios pesqueiros se sobrepõem às rotas previstas para as embarcações de apoio. O MPF aponta que, mesmo diante dessa evidência cartográfica, a empresa classificou tais áreas como de “uso ocasional”, argumento rebatido por levantamentos independentes que mostram atividade constante ao longo do ano. Primavera e Capanema também deveriam integrar a área de influência, já que empresas desses municípios foram listadas como receptoras de resíduos da perfuração, o que implica impactos diretos não considerados.
Durante a COP30, em painel promovido pela Universidade Livre do Marajó, o diretor de projetos da instituição, Rodolfo Pereira, chamou atenção para os impactos associados à exploração petrolífera na Margem Equatorial. Ele explicou que o risco não se limita à possibilidade de um vazamento, mas inclui o próprio aumento das emissões decorrentes da cadeia de produção, o que, em suas palavras, tende a “intensificar o aquecimento global” e a agravar fenômenos oceânicos já perceptíveis na costa amazônica. Pereira também destacou falhas estruturais da legislação de royalties, que utiliza o critério de ortogonalidade para definir quem recebe compensação. Esse modelo, observou, exclui justamente áreas vulneráveis, como as já citadas e partes do arquipélago do Marajó, que estão entre as primeiras a sofrer eventuais efeitos de contaminação durante o transporte do petróleo.
O diretor da Unilivre defende que disseminar esse conhecimento é estratégico para embasar mobilizações e iniciativas jurídicas, inclusive no âmbito do Ministério Público Federal. Não obstante, um dos fundamentos mais robustos da ação está nas análises produzidas por pesquisadores da UFPA, Unifesp e UFPR sobre a lógica territorial da pesca artesanal. A pesquisa demonstra que os espaços de pesca não são fixos, mas desenhados pela dinâmica das marés e dos deslocamentos dos cardumes. Esses “maretórios”, como definem os pesquisadores, foram fragmentados no estudo ambiental, que representou as áreas de pesca como manchas isoladas no oceano, descoladas da realidade vivida pelos pescadores.
A cartografia social elaborada junto às comunidades mostra, por exemplo, que no caso da Vila de Jubim, em Salvaterra, parte significativa do território tradicional não aparece no mapa oficial apresentado no licenciamento. Para o MPF, esse tipo de distorção provoca uma consequência direta: ao subestimar o espaço de uso real das comunidades, a área de influência é reduzida artificialmente, deixando de fora grupos que serão efetivamente atingidos.
Além disso, os estudos submetidos ao licenciamento ignoraram a interdependência territorial entre Pará e Amapá. A frota artesanal de 14 Reservas Extrativistas da costa parauara chega a percorrer centenas de quilômetros até áreas que coincidem com a zona operacional da Petrobras, relação que foi completamente desconsiderada no relatório.
O MPF também aponta falhas na coleta de dados do Estudo Ambiental de Caráter Regional, documento que deveria oferecer uma visão integrada dos impactos para toda a bacia. A equipe responsável, segundo a ação, visitou apenas uma fração das comunidades pesqueiras identificadas nos municípios mais importantes da região. Em Salvaterra, Bragança e Augusto Corrêa, menos de 10% das localidades mapeadas foram avaliadas in loco. Em Belém, a proporção também foi considerada insuficiente.
Outra omissão apontada diz respeito às Unidades de Conservação. Enquanto o estudo menciona 15 áreas protegidas, dados oficiais atualizados apontam para a existência de 35 UCs costeiras entre Pará e Amapá que deveriam ter sido incluídas na avaliação.
A ação afirma que a licença foi emitida em desacordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que exige a realização de Consulta Prévia, Livre e Informada com povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais afetadas. Petrobras e ANP alegaram que a consulta não seria necessária nesta fase, argumento rejeitado pelo MPF, que destaca que a medida só tem validade após a participação efetiva dos grupos impactados.
A ação também invoca o recente Parecer Consultivo nº 32/2025 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que estabelece a obrigação de devida diligência reforçada para atividades que possam agravar a crise climática ou afetar ecossistemas sensíveis. O MPF sustenta que o Estado brasileiro não cumpriu esses requisitos ao autorizar a perfuração sem estudos completos e sem considerar a melhor ciência disponível para avaliar riscos socioambientais.
Na ação, o Ministério Público Federal solicita que a Justiça suspenda imediatamente a Licença de Operação nº 1.684/2025 (ou, alternativamente, declare sua nulidade) e determine a revisão completa da Área de Influência, de modo a incluir os municípios parauaras deixados de fora do licenciamento. O MPF requer ainda a realização de novos estudos que contemplem a atividade pesqueira, o gerenciamento de resíduos, os territórios tradicionais e as populações vulnerabilizadas, além da elaboração de um Plano de Compensação da Atividade Pesqueira compatível com a real magnitude dos impactos previstos. Por fim, o órgão cobra o cumprimento da consulta prévia, livre e informada a todas as comunidades afetadas, conforme estabelece a Convenção 169 da OIT.
Para os procuradores, permitir a continuidade da operação sem essas correções representa risco concreto para a segurança alimentar e econômica de milhares de famílias, além de comprometer a proteção de uma das regiões mais sensíveis da Amazônia marinha.
Mapa: Eia/Rima do licenciamento









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