Recentemente li o livro “Melhor não contar” de Tatiana Salem Levy. Já havia lido “Vista chinesa” e tinha ficado encantada, por ser um livro forte, sensível e que se propõe ir à fundo numa experiência de Estupro. Sim, leitoras e leitores, muito inquietante, mas também um livro que me fez pensar que toda profissional de psicologia deveria ler.
Eu sempre aviso do que se trata, pois nós mulheres somos marcadas por “gatilhos”, ou melhor, experiências traumatizantes e ler violências nem sempre é simples. Ainda assim, há algo na literatura que acho indispensável, um acesso que se faz e que não precisa estar literalmente escrito, mas que sentimos juntas, sentimos com.
Recomendo estas leituras, especialmente à profissionais e estudantes de psicologia, pois não é apenas por livros e artigos teóricos e acadêmicos que desenvolvemos a sensibilidade da escuta e a delicadeza de se permitir ouvir e acessar as profundidades das vivências.
Ouvir violência, essa dimensão tão multidimensional, complexa e traumática requer muito: sustentar ouvir a angústia, a dor, o irrepresentável, o indizível. A arte e literatura, então, são caminhos que suponho nos auxiliar a bordejar aquilo que escapa e quem sabe desenvolver sensibilidade para ouvir e acolher.
“Melhor não contar” se tornou minha nova indicação para psicólogas e vai no mesmo rumo de honestidade, coragem e profundeza de “Vista Chinesa”. Este novo livro, que agora é autobiográfico, pois o outro que citei é a narração da vivência de uma amiga da autora, também vem me remexendo, mesmo após acabar a leitura.
Em certo momento, conversando com meu marido, ele me fez a seguinte intervenção: lembro de me contares algo parecido da tua história, parece ser algo que se repete, ou talvez comum, da vivência de vocês, mulheres. Exclamei que sim. Com olhos marejados. Fiquei muito emocionada e enfatizo novamente a coragem e profundidade com que ela aborda sua vida, suas angústias, crises existenciais, que tanto nos atravessam e, em alguns aspectos, até de forma inquietantemente familiar.
O livro, como vocês bem podem imaginar pelo próprio título, irá abordar a temática do assédio. Não um assédio qualquer, mas o que confere aos segredos familiares (e gostaria de lembrar vocês do número exorbitante de estupro de vulnerável nos solos brasileiros). O livro é sobre assédio, violência sexual e psicológica contra as mulheres, mas também sobre relação mãe e filha, atravessadas pela transmissão do amor, do feminino, de gênero (e seus marcadores, inclusive de violências), do dito, não dito, de símbolos e de imagens.
É um livro sobre lutos (da infância, da família originária, da irmã, da imagem que se tinha do namorado, de algo do corpo, sobretudo da mãe), logo sobre perdas e violências, com tudo entrelaçado.
Lembro que falei para umas amigas, “este livro me faz ver como as pessoas em seus universos particulares são intensas, profundas, ricas e lindas. Como existem mulheres incríveis e admiráveis, e como a violência contra nós, mulheres, é… (falei um palavrão)”.
E dentre as identificações que tive, o ser filha e ter medo de perder a mãe, e ser mãe e ter medo de se perder das crias (até mesmo pela morte), o livro trouxe uma a mais, pois aborda algo que sempre me mobilizou enquanto mulher que escreve: a quem escrita serve? Parece que ser perseguida e julgada por falar e “expor” é comum para todas que quebram os segredos dos diários. Aliás, Tatiana discorre e pensa muito sobre isso: por que nos fazem querer escrever para não sermos lidas, para que nossas histórias fiquem trancadas e silenciadas em diários com cadeados?
Eu cheguei a ouvir isso: escreva em diários suas crônicas! E quantas vezes escrevi, sentindo que estava mostrando demais, ao mesmo tempo em que precisava ser testemunhada. Quantas vezes precisamos escrever para que a vivência deixe de se fazer doença e repetições na nossa própria história?
E quando escrevo, em que minha história vira literatura, para onde ela vai e quem alcança? Não apenas remexendo nas minhas tramas, passado, marcas, me vi sentindo raiva. Uma violência do passado que nunca veio à tona, sempre apareceu em múrmuros, narrada silenciosamente às amigas, minha mãe, companheiro, pequenos grupos. A raiva que tive do agressor (e que nunca deixou de ser raiva, pois acredito que ele esteja vivo por aí, agredindo outras mulheres) me fez procurar o padrasto narrado na história, buscar algo de concreto, por querer que ele saísse da invisibilidade, como tanto eu mesma quis isso do meu agressor. Ao pesquisar, vi seus prêmios. Vi que foi eleito imortal pela academia de letras brasileira, que marcou história do cinema brasileiro. E fiquei pensando como pode tantos abusadores serem ídolos, ovacionados, premiados? Como podem seguir a vida, sem nenhuma impunidade?
Totalmente transferida com a história, pensei: Como ele pôde afetar a vida de mulheres incríveis, sem o mínimo de bom senso, compaixão e respeito? Quantos homens se metem, atrapalham, violentam e invadem relações femininas sem pensar no estrago que fazem, apenas por serem egocentrados, em nome do seu interesse (maior que tudo e todos)?
Fiquei pensando na mãe da escritora, uma mulher que me apaixonei pela potência que era. Tão libertária, tão intelectual, autêntica, se submetendo a uma relação de migalhas. E não quero aqui julgá-la, ao contrário, minha constatação era de pensar como todas nós estamos sujeitas a pequenezas (não percebermos nosso valor e cabermos em potinhos menores que nós) em nome do dito amor. Fiquei pensando como mesmo as mulheres mais interessantes e admiráveis não conseguem romper a lógica da submissão patriarcal pela subjetivação do dispositivo amoroso. Há como não ser fruto de sua época?
“Melhor não contar” é um livro que narra também sobre abandono por parceiros que admirávamos e acreditávamos, nos nossos momentos de maior fragilidade. Tudo em silêncio. Ele constata (o que tanto já vivemos e sabemos) que enquanto os homens que agridem temem sua exposição, afetação da imagem de bom moço, sequer refletindo o mal que impõem às mulheres, estas seguem, mesmo que capengas, presas nas tramas que ninguém mais sabe, guardadas entre quatro paredes, cartas, confissões no privado (nunca no espaço público), nos diários.
Romper silêncio é acerto de contas? Ela se questiona. Não sei, se for também, tudo bem. Por que não? Embora seja bem mais que isso. Cura? Cartase? Testemunho? Reparação? Tudo isso ao mesmo tempo? Não sei, quem sabe? O que sei é que tem horas que é preciso estourar o cadeado dos diários de segredos dos lares que nos trancafiaram e continuam a trancafiar, mesmo com passar dos séculos. Estilhaçar a máscara, estilhaçar cadeados para que gritos denunciem o que não é perdoável e não pode ser reprimido, a preço de adoecer quem guarda o segredo.
O segredo é o pacto da sociedade patriarcal que favores os homens e violência mulheres. O segredo é estratégia de domínio.
E já que a vida é isso, um triz, muda de uma hora para outra, como nos conta a autora diante de suas perdas, penso aqui e compartilho com vocês: Melhor contar, sempre.
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