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Ao concluir a marca do 50º filme de sua carreira, o cineasta Woody Allen dirigiu “Golpe de Sorte em Paris”, que em Belém foi esnobado pelo circuito comercial de exibição (salas de shopping) e registrou baixa adesão do público no circuito alternativo, hoje também com espaço aberto para produções do cinema de gênero.

 “Golpe de Sorte em Paris” narra a vida de Fanny (Lou de Laâge), que é casada com Jean (Melvil Poupaud). Ao encontrar Alain (Niels Schneider), um colega do passado, o destino e as escolhas pontuais da vida pedem passagem, não só como enredo e motivação dos personagens, mas também como protagonistas temáticos centrais da história.

Alain acredita na sorte, no controle de seu próprio destino e como escritor pode viver em qualquer lugar do mundo. Fanny lida com o conforto de estar inserida nas camadas dos moradores ricos de uma Paris em tons dourados, fotografia de entardecer e os tons azulados dos interiores da vida conjugal aparentemente estável. Ela é surpreendida pelos novos movimentos que a vida pode oferecer como mudança total. E a nebulosidade que paira sobre os negócios de Jean, com seu charme e sofisticação, não deixa espaços para assuntos como golpe de sorte, acaso, destino.

Está claro que este trabalho de Woody Allen, um dos diretores de cinema mais prolíficos dos séculos XX e XXI, se espelha em outras obras suas, como “Match Point – Ponto Final” e “Crimes e Pecados”. Felizmente, “Golpe de Sorte em Paris” é outro filme, com os temas que permeiam a carreira de Allen como realizador, como a (in) capacidade de controle sobre emoções humanas, o suposto direito de assassinato como ordem natural de uma classe social privilegiada e a não propriedade de corpos, mentes e sentimentos que subitamente podem causar reviravoltas e outros estragos na vida de personagens finos e sofisticados.      

E o cinema autoral de Woody Allen está lá com introspecção e linguagem verbal, protagonistas complexos e montagem elegante ao som da música jazz como trilha sonora para expressar encantamento e ritmo à narrativa, A música que toca no filme é a versão de 1966 para “Cantaloupe Island”, gravada pelo cornetista Nat Adderley e Herbie Hancock ao piano.

Allen foi praticamente “cancelado” nos EUA por uma série de processos ligados ao envolvimento com sua filha adotiva, com quem depois se casou. O distanciamento do público e o fardo para conseguir novos financiamentos para continuar trabalhando nos Estados Unidos o levou a filmar na Itália, França, Espanha e Inglaterra, com filmes brilhantes e outros nem tanto, o que justifica a velha máxima que um filme médio de Woody Allen é sempre melhor do que muitas apostas e museus de grandes novidades do cinema atual.

Aqui, de acordo com os filmes assistidos que contribuíram para minha formação cinematográfica, proponho um levantamento da monumental obra de Allen, que pode ser dividida em diversas camadas e fases de sua carreira.

A comédia inteligente e escrachada dos anos de 1970 traz a marca da reflexão irônica sobre o mundo em filmes hilários como: “Bananas” (1971), “Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo, Mas Tinha Medo de Perguntar” (1972), “O Dorminhoco” (1973) e “A Última Noite de Boris Grushenko” (1975). E é nesse período que Allen consegue a consagração internacional com “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” (1977), avança para a realização de filmes memorialísticos e o peso da arte de encontros e desencontros em (“Manhattan”, 1979 e “Memórias,” 1980), rompe com a imagem de uma carreira solidificada pela comédia e oferece um drama forte ao estilo Ingmar Bergman (Interiores, 1978).


A década de 1980 é marcada pela produção de obras-primas do cinema com reinvenção da narrativa no falso documentário “Zelig” (1983) e o cinema de fantasia e melancolia em “A Rosa Púrpura do Cairo” (1985). Há espaço para a leveza “Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão” (1982), o ótimo “Broadway Danny Rose (1984), a nostalgia de “A Era do Rádio” (1987) e as relações familiares de “Hannah e Suas Irmãs” (1986). Os filmes densos e sombrios marcam presença com “Setembro” (1987), “A Outra” (1988) e “Crimes e Pecados” (1989).

A década seguinte tem início com referências ao cinema de Federico Fellini em “Simplesmente Alice” (1990), a homenagem ao expressionismo alemão em “Neblina e Sombras” (1991) e o filme que reflete a crise conjugal com Mia Farrow em “Maridos e Esposas” (1992). É também o tempo de “Um Misterioso Assassinato em Manhattan” (1993), “Tiros na Broadway” (1994), “Poderosa Afrodite” (1995), o musical “Todo Mundo Diz Eu Te Amo” (1996) e de filmes maravilhosos como “Descontruindo Harry” (1997), “Celebridades” (1998) e “Poucas e Boas” (1999).

O século XXI traz produções diferentes em estilo e motivações de personagens que podem ter negócios de fachada (Trapaceiros, 2000), comédias descompromissadas (“O Escorpião de Jade”, de 2001; “Scoop, O Grande Furo”, de 2006; e “Tudo Pode Dar Certo”, de 2009), sedução e desilusão em “Igual a Tudo na Vida” (2003), comédia e tragédia em “Melinda e Melinda” (2004), e o resultado fabuloso observado em “Dirigindo no Escuro” (2003), “Match Point – Ponto Final” (2005), “O Sonho de Cassandra” (2007) e “Vicky Cristina Barcelona” (2008) .

Apesar da estreia nada auspiciosa de “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos” (2010), Allen segue em frente e alcança novamente o padrão de qualidade em filmes que já nasceram como clássicos de sua filmografia, como o belo “Meia Noite em Paris” (2011), “Para Roma Com Amor” (2012) e faz a interface com a peça de Tennessee Williams (“Um Bonde Chamado Desejo”) para a premiada atuação de Cate Blanchett em “Blue Jasmine” (2013). Em seguida, é a vez da fórmula do mau humor que vira piada ser repaginada em “Magia ao Luar” (2014), o drama existencial de “Homem Irracional” (2015), a frivolidade das relações humanas em “Café Society” (2016), a fatalidade das decisões desastradas em “Roda Gigante” (2017) e a volta da comédia romântica em “Um Dia de Chuva em Nova York” (2019).

“Golpe de Sorte em Paris” (2024) é o primeiro filme de Woody Allen falado em francês e com elenco local (França). Há especulações de que pode ser o último longa-metragem do realizador para o cinema, arte que Allen abraçou com comédias malucas, dramas existenciais que dialogam com as obsessões da contemporaneidade, realismo mágico e a verve nostálgica que refaz as próprias memórias para a construção de outras imagens que ficarão para sempre na História do Cinema. Em tempo: “Golpe de Sorte em Paris” está sendo anunciado para acesso na Amazon Prime Vídeo, em breve.  

José Augusto Pachêco
José Augusto Pachêco é jornalista, crítico de cinema com especialização em Imagem & Sociedade – Estudos sobre Cinema e mestre em Estudos Literários – Cinema e Literatura. Júri do Toró - 1º Festival Audiovisual Universitário de Belém, curadoria do Amazônia Doc e ministrante de palestras e cursos no Sesc Boulevard e Casa das Artes.

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