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Há semanas que passam insípidas, inodoras e incolores, sem deixar nada que justifique registrar, ou, o que é pior, registrando fatos que simplesmente não se justificam. Situações despropositadas, insensatez, acontecimentos desagradáveis e contrariedades absolutas formam o recheio de dias assim, dos quais é difícil extrair inspiração para escrever.

A crônica, por definição, cuida da narrativa do cotidiano, de ocorrências corriqueiras que, por algum motivo particular, despertam a atenção do cronista. É um espaço fluido entre a literatura e o jornalismo que bem pode trazer elementos da prosa, bem pode ser lírico, mas jamais terá a liberdade plena da poesia. O cronista está de algum modo adstrito à realidade, mas ao poeta é dado divagar, abordar o onírico, tratar do patético, enfeitar o irreal e decifrar o absurdo. Assim, quando a crônica não encontra cenário ou fonte, é melhor que a poesia assuma a direção.

Todavia, como não sou poeta prefiro admitir que a semana passou estéril, infecunda, do que aventurar-me em terreno desconhecido – mais vale confessar o vazio de ideias e desejar que o desânimo seja passageiro sem sucumbir ao pânico, afinal  esta inanição não é privilégio de amadores pretensiosos como eu; pode atingir toda a gente indistintamente, inclusive ídolos da magnitude de Rubem Braga (1913-1990), talvez o maior cronista brasileiro de todos os tempos, gênio que alçou esses relatos comezinhos da rotina à condição de gênero literário respeitado no país.

Num texto chamado A feira, datado de 1953, Braga já dizia que “na atual situação do mundo é bom que os poetas estejam vigilantes. Quanto aos cronistas, que eles durmam em paz; é melhor que se recolham e esqueçam de fazer a crônica destes dias, em que não há nenhum exemplo nem lição.”

Feita esta introdução, que acima de tudo pretendeu ser honesta com os que me dão algum crédito, com os que se dispõem a ler o que escrevo, merecedores do meu respeito e da minha gratidão, cumpre-me perseverar, insistir, abandonar o ócio das desculpas esfarrapadas para cumprir a missão a que me propus: escrever semanalmente para o Portal Uruá-Tapera, honrando o gentil convite da Franssinete Florenzano, convite este, diga-se de passagem, que tanto bem me tem feito.

Neste propósito, e acreditando firmemente no adágio popular segundo o qual toda regra traz em si sua exceção, fui buscar na semana apática que tive a partir da segunda-feira, depois de um animado Dia das Mães, algo deveras interessante, algo que destoou do panorama geral fazendo as vezes de tábua de salvação. Esse algo chama-se Torto Arado, o premiado romance do escritor baiano Itamar Vieira Junior, que já ultrapassou no Brasil a marca de 400 mil exemplares vendidos, e que já está traduzido em diversos países, entre os quais Alemanha, Itália e Japão.

Em razão de tudo o que havia encontrado sobre a obra, em especial das considerações feitas pela poetisa e editora portuguesa Maria do Rosário Pedreira, iniciei a leitura com enorme expectativa que em nada restou frustrada. A saga das irmãs Bibiana e Belonisia é grandiosa, grandiloquente e transformadora, literatura da mais alta qualidade, arte pura a fazer quebrar ondas ferozes no lago tranquilo em que meus últimos dias pareciam submergir. Em outros termos: uma agradável chacoalhada de beleza e talento.

Acredito que a maioria dos leitores de Torto Arado se prenda às irmãs, que além de dividir experiências de vida repartem também a responsabilidade de narrar a história. Mas eu, não sei bem o porquê, criei especial afeição à figura de Zeca Chapéu Grande, pai das meninas, homem de princípios rígidos e religiosidade mística, cujos valores Itamar Vieira Junior descreve com rara maestria, como bem demonstram esses preciosos excertos:

“Meu pai não era alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos de colher frutos e espinhos da mata. Escondia as mãos com a tinta escura quando precisava deixar suas digitais em algum documento. De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco. Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê acharia que eram os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos legar.” (…)

“Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobres as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia: ‘o vento não sopra, ele é a própria viração’, e tudo aquilo fazia sentido. ‘Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”, ele tentava me ensinar. Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado. Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da lua. Sabia que na lua cheia se planta quase tudo; que mandioca, banana e frutas gostam de plantio na lua nova; que na lua minguante não se planta nada, só se faz capina e coivara.

“Sabia que para um pé crescer forte tinha que se fazer a limpeza todos os dias, para que não surgisse praga. Precisava apurar ao redor do caule de qualquer planta, fazendo montículos de terra. Precisava aguar da mesma forma, para que crescesse forte. Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração.”

Ainda caminho pelo terço final do livro, e devo concluir a leitura hoje ou amanhã, mas já posso recomendar com tranquilidade que o leiam, que sejam tomados pelo encanto do trabalho do autor, pelo cuidado da sua pesquisa, pela sensibilidade da sua prosa.

Preciso dizer, por fim, que Zeca Chapéu Grande junta-se com louvor aos muitos pais que admiro na literatura, biológicos ou afetivos: José Arcadio em Cem anos de solidão (Gabriel Garcia Marquez), Crisóstomo em O filho de mil homens (Valter Hugo Mãe), Sr. Sempere em A sombra do vento (Carlos Ruiz Zafón), Mr. Brownlow em Oliver Twist (Charles Dickens), Gepeto em Pinóquio (Carlo Collodi) e Cipriano Algor em A caverna (José Saramago), entre tantos outros.

Cada um deles me lembra um pouco o pai que tive, do qual guardo imensa saudade. No último dia 12 de maio ele chegaria aos 81 anos, se vivo fosse. Não chegou, infelizmente. Em 23 de dezembro de 2018, como escreveu José Luís Peixoto em Cemitério de Pianos, ele “Foi rodeado por pessoas que não o conheciam. Foi levado para o hospital. E morreu. Deixou de respirar e de pensar. Não deixou de ser o meu pai.”

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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