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Quando eu estava na faculdade de comunicação e me vi naquele momento crucial de decisão do tema do meu tcc, escutei o bom e velho conselho de escolher um assunto pelo qual eu fosse apaixonada. Pois bem, na época, ainda adolescente, eu só queria saber de rock and roll. Eu queria me formar em comunicação para poder seguir para a segunda faculdade – de música, canto lírico, que fiz – mas do que eu gostava mesmo era de rock. Então fui estudar a influência do dito cujo nos movimentos sociais de Belém nos anos 60 e 70. Não faltava gente para entrevistar, tipo o Pedro Galvão e os “Augustos” Edgar e Edyr. Dirigi um curta documental como parte do trabalho, brinquei de fotógrafa pela primeira vez na vida e “fantasiei” um amigo de Robert Plant para a capa. Foi legal. Em muitos níveis, já estavam ali tantos interesses meus, tantas partes de mim que eu nem sonhava, na época, e que só descobriria muito tempo depois.

Pois bem, hoje, muito tempo depois, quando eu penso no meu tcc, a primeira coisa que me vem à cabeça é um comentário que a professora Ana Prado, que foi minha orientadora, fez: de que alguém deveria pesquisar o fenômeno midiático que é o Calypso. Eles tinham contrato com a Sony Music, porém comentava-se em Belém que a própria banda mantinha uma produção pirata de seus CDs para serem vendidos a preços que o seu grande público pudesse comprar, nos sinais e camelôs. Muito interessante, não poderia deixar de concordar, porém eu não tinha o menor interesse sobre o tema. Eu até dançava um brega, como todo paraense que se preza, mas dedicar um ano da minha vida para assinar um trabalho sobre? Para aquela Gabi, impossível.

A Gabi de hoje, no entanto, pensa diferente. O Calypso foi um fenômeno interessantíssimo do ponto de vista musical, do cultural, do social, do econômico, do midiático, e a Joelma é simplesmente genial. Momento de silêncio, pensando no julgamento que fervilhou na cabeça de muita gente que está me lendo agora. Sim, eu mantenho a afirmação. Eu tiro o meu chapéu pra Joelma. Tanto que até aprendi a curtir as músicas cantadas pela voz que eu antes detestava, por reconhecer nela a importante representação e representatividade feminina paraense e amazônida.

Quando se tem acesso à educação, culturas, e uma vida com o mínimo de dignidade e respeito aos direitos fundamentais, é muito “fácil” torcer o nariz para a artisticidade de uma mulher de origem humilde, do interior do Baixo Amazonas, que conviveu com a violência do pai e, em seguida, de um marido abusador, que não pode estudar, mas que teve a inteligência de ganhar o mundo e a Billboard com os elementos mais comuns da periferia que muito bem conhecia: roupas e maquiagem extravagantes e música dançante. Joelma é um fenômeno porque uma parcela enorme das mulheres urbanas da Amazônia se enxerga nela, vibra com o sucesso que, se ela conseguiu, pode também se tornar real, um dia, para tantas outras.

Confesso que não acompanho muito a grande mídia de entretenimento brasileira pois tenho andado especialmente focada na Amazonia, mas me parece que, nos últimos tempos, a Joelma estava enclausurada em alguns poucos memes de redes sociais e figurinhas do WhatsApp, até que sabe lá por que diabos (realmente não sei) ressuscitaram a música “do tacacá” e ela bombou de novo no mundo inteiro e o mundo inteiro ficou curioso para saber o que era o nosso tacacá. E isto é bom para nós? Claro que é.

Aposto que ainda hoje tem muita gente em Belém, em alguma mesa na Braz de Aguiar e arredores tomando um vinho espetacularmente caro e sem nenhum motivo para tal a reclamar que Belém só aparece por essas coisas. Eu conheço várias dessas pessoas e talvez (infelizmente, com certeza) em algum momento da vida tenha me deixado levar por elas. É o tipo de gente que ainda vive num devaneio de que é o colonizador, que ainda não se tocou que esse patrimônio revestido de lindos azulejos (os que restaram) representam o massacre do nosso povo, da nossa Mairi.

Não me levem a mal e não achem que estou sugerindo aqui acabar com os nossos casarios portugueses, o Relógio, os coretos, o Theatro, mas acho muito justo que em 2024, quando falem de Belém fora do Pará, as pessoas pensem na iguaria de origem indígena, vendido nas banquinhas nas esquinas, que é o tacacá, e que associem a nossa cidade com a imagem de uma mulher caboca que, intuitivamente, tomou para si o termo que secularmente era tido como pejorativo para transformar num case de sucesso. É isso o que somos e só nos assumindo como tal é que conseguiremos atingir o nosso verdadeiro potencial, como uma fotografia do Luiz Braga que, ao mostrar as cores e a gente da periferia, ganha qualquer prêmio do mundo.

Belém completa 408 anos e eu infelizmente não estou lá para tomar um tacacá. Só me resta parafrasear outra mulher caboca, marajoara, Adalcinda Camarão: “Belém, minha terra, meu rio, meu chão, meu sol de janeiro a janeiro a suar, me beija, me abraça, que eu quero matar a imensa saudade que quer me acabar”. Que venham dias melhores, Belém. O futuro é feminino. Obrigada por nos parir.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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