Estou há um tempo tentando escrever uma crônica sobre a minisérie Disclaimer. Um dos motivos da demora, perpassa algo que envolve a própria trama: ser mulher. No meu caso, a falta de tempo: muitos empregos, filho criança, filha adolescente. No caso da protagonista: outra trama que envolve tempo e mulheres, mas que desdobrarei em breve.
Para quem não assistiu, a trama é baseada no romance homônimo escrito por uma mulher, Renée Knight, foi lançada ano passado (2024) pela plataforma Apple Tv, escrito e dirigido por Alfonso Cuarón, premiado cinco vezes no Oscar (sim! Ele é o diretor do maravilhoso Roma) e é estrelada pela incrível Cate Blanchett, ou seja, vale a pena assistir!
O título tem como tradução “Difamação”, logo vocês já imaginam o conteúdo, uma vez que as palavras difamação e mulheres, em nossa cultura, infelizmente, andam juntas. Portanto, não me acusem de spoiler e sugiro que leiam, após assistir, já que sempre me proponho me expressar livremente, tal como aprendi na formação em psicanálise.
E vou começar esta coluna justamente pela minha relação com a psicanálise. Estava pensando na minha resistência a escrita. Após ter me empolgado com a ideia, percebi que ao ler a crítica de uma renomada psicanalista, publicada na rede social de uma editora que admiro muito, de grande visibilidade, credibilidade e circulação nacional, que ia ao encontro (aliás, na direção oposta) da minha percepção, veio uma trava.
A crítica alegava alguns pontos: 1) A série caia na repetição de usarem mulheres como vítimas, fazendo que mulheres só sejam validadas nesse papel; 2) Perdeu a chance de explorar a questão edipiana entre mãe e filho; 3) Não explicava bem a raiva do filho e seu afastamento da mãe e ainda li uma frase que me soou ainda pior: 4) a mulher parecia dissimulada, nada inocente; por fim 5) uma mulher “empoderada” não cairia assim numa difamação.
Todos esses comentários me incomodaram profundamente. Primeiro pensei: será que minha análise é rasa? Que eu não estou sendo psicanalista o suficiente? Mas logo analisei que não. Minha desconfiança de mim vem de muitos fatores, seja da síndrome de ovelha desgarrada por sustentar um lugar distinto e de, por vezes, ter dificuldade de encontrar pares que dialoguem a psicanálise e feminismo, seja das minhas marcas de mulher, cujas inseguranças – apesar dos investimentos e esforços – são companheiras familiares, que se desenterram quando tem o mínimo de chance. Contudo, para além disso, eu constatei que realmente discordava do posicionamento da colega. Me dei créditos, ao considerar todo acervo teórico, vivencial e profissional que tenho e que possuem seu valor, não me diminuindo diante do fato de discordar daqueles que encarnam o poderio colonial, seja pelo status, poder, fama, região (sim, sabemos que importamos e nos delegam uma crise de vira-lata, por sermos “anônimos do Norte”).
Sou uma mulher que já sofreu violência sexual, além de ser uma mulher que já sofreu difamações em torno da sexualidade. Coordenei por um tempo um grupo de estudos e um projeto, com bastante leituras e prática nas minhas formações, que me permitiram acompanhar situações bem semelhantes. Essas vivências e minhas leituras, acredito eu, me aproximam de outras formas da personagem. Com outras lentes, sensibilidade, identificações. Logo, longe da artificialidade relegada a minissérie, que li na dura coluna de circulação nacional, senti a obra de forma muito distinta e profunda. E não digo aqui que minha análise é único destino de interpretação tampouco que ocupa lugar de “verdade”, acredito que a minha leitura e a da colega na plataforma citada, revelem algo de nós, dos nossos próprios destinos de conflito. Mas, utilizo minha saída psíquica de sublimação intelectual como recurso literário para vocês e compartilho então, minhas compreensões feministas, e também com uma pitada psicanalítica (já que não me aprofundo em termos e conceitos), sobre essa série, que foi tão comentada e aclamada pelo público.
Quero, antes de tudo, destacar novamente a direção do enredo. Como expectadora, fui levada, à princípio, a acreditar no que assistia, até que em determinado momento pensei: mas por que estou acreditando em uma narrativa que simplesmente não faz sentido racional algum? E ali comecei a me afetar. E digo logo, tive muitas afetações.
Lá vamos ao spoiler: a história mostra a vida de um senhor deprimido, que perde sua esposa. Ele descobre um livro que ela escreveu no tempo que se isolou, após ambos perderem o único filho por afogamento. Intercalando memórias (que depois descobrimos ser trechos do livro que ela própria escreveu, na busca de criar um sentido para sua perda), o filme mostra a busca deste senhor em dar um destino para o livro e realizar justiça, ou melhor, vingança, pois pela trama narrada, seu filho havia perdido a vida, após tentar salvar a vida do filho de uma moça, mais velha, por quem estava apaixonado e que havia o seduzido.
Logo, a protagonista – uma roteirista premiada – cujo papel de destaque e poder seduz e atrai inveja de homens, que não a aceitam no poder, e da própria rivalidade feminina – tem sua vida revirada. Dentre as principais ações de vingança, o senhor distribui fotos para seu filho e marido, em um plano lento e gradual. Posteriormente, estende a distribuição para colegas trabalho, afetando seu ambiente profissional, e até a livraria que frequenta. As intervenções criminosas acabam levando o filho da protagonista a uma tentativa de suicídio, assim como ao abandono pelo marido, que não lhe ofertou a mínima chance para explicação.
Ela, por sua vez, recusa-se a dar explicações no ambiente de trabalho, passa a ser julgada e tem sua vida totalmente “bagunçada”, ao se perceber numa situação de total perseguição, com risco de assassinato do próprio filho, em uma luta solitária, pois é totalmente invisibilizada, sem chances de sequer ser desacreditada, pois sua versão do acontecimento não fora ouvida.
Somente após forçar que o senhor escute sobre a realidade ocorrida que ocorre a reviravolta final – ela foi violentada (estuprada) pelo rapaz, em um momento que seu marido priorizou o trabalho; precisou, escondida e sozinha, realizar um aborto, e por todo trauma, negou as investidas da mãe do rapaz que queria conhecer a criança pela qual filho perdeu sua vida (Sim, o mesmo rapaz que a estuprou, no dia seguinte morre afogado após tentar salvar seu filho). Só assim, o senhor passa a observar as várias questões que negligenciou ou resistiu em perceber e que mostrava uma relação complexa e edipiana da relação mãe e filho, relação esta que superprotegia pela adoração e negligenciava e invisibilizava os comportamentos desviantes do rapaz, assim como de uma configuração familiar que ele, enquanto marido e pai, era obsoleto.
O interessante é que o marido não a escutou a protagonista em nenhum momento. A trama toda gira em torno de sua masculinidade e a possibilidade de ter sido traído. Comparações de performance sexual quanto ao seu desempenho, desejo e prazer da companheira o assombram ao ponto de impossibilitar um campo do básico de uma relação de respeito e simétrica: o diálogo. Mesmo que o diálogo duro, ou como popularmente tem-se usado, as ditas “as conversas corajosas”. Em um mundo menos cruel para nós, mulheres, este marido poderia ter acolhido, protegido, apoiado sua companheira de vida, mas o que assistimos é justamente o contrário: a trama é unicamente sobre ele e suas inseguranças, ficando fixado no autocentramento egóico, comum aos homens, logo facilmente o dito amor se torna inexistente e uma relação de anos de construção, descartada. E assim vemos a moral sexual em torno do prazer e corpo feminino tomar a cena.
Nós, mulheres, quando expostas, nos tornamos apenas esse corpo, cuja sexualidade é julgada, precisa ser dominada e é parâmetro de quem somos e do que merecemos. Uma vida profissional de muito investimento e sucesso pode ser encerrada. Novas portas profissionais, fechadas. A moral sexual de uma mulher parece ser a condição de trânsito para nós. E nisso, algumas questões se impõem: quem narra os fatos? Como os fatos são narrados? Quem acredita nos fatos? Quem os valida? Há espaço para novas perspectivas interpretativas e de contraposição?
Por que foi tão fácil que colegas, marido acreditassem numa narrativa que, racionalmente é impossível de ser real? Afinal, a mãe não estava lá. Como ela saberia os detalhes sexuais da vida de seu filho? (e aqui o porquê falamos da trama edipiana, que acabam por nos da pista pelos destinos que ela dá para sua fantasia, nas suas elaborações) Por que acreditar num estranho e não em alguém que você conhece?
O marido só acredita na violência sexual sofrida por sua mulher quando o senhor afirma para ele que cometeu um erro. Logo, somente quando outro homem autoriza repensar a história que, finalmente (ufa!), ela pôde ser escutada – e como isso é angustiante de acompanhar.
Temos então, um dos diálogos mais comentados sobre a série. Ela constata como para ele parecia ser mais fácil o fato de ela ter sido violentada sexualmente do que a possibilidade de ter tido prazer com outro homem.
É sobre isso o controle de nossos corpos. Mas faço um adendo: homens costumam acabar casamentos quando mulheres são estupradas. Nem mesmo quando elas são vítimas de outro homem, serão acolhidas e absolvidas de punições e julgamentos.
Sobre os comentários da crítica psicanalítica que citei, fiquei pensando como um/uma profissional da escuta (e aqui estou considerando que a narrativa dada pela protagonista, como se fosse uma paciente, ou seja a versão da sua vivência, sua realidade psíquica) questiona, julga e ainda acha que ela era dissimulada? Como estamos ouvindo as violências sexuais relatadas pelas mulheres? E aqui preciso pontuar brevemente sobre trauma.
Em situações traumáticas podemos perder noção exata e coerente de discursos. Traumas são desorganizadores também porque são marcados por uma espécie de transbordamento emocional que não são fáceis, nem simplesmente apreendidas pelas palavras. Encontrar uma forma de se expressar e após isso sentir que nada mais precisaria ser dito, é uma experiência quase sempre desconhecida por sobreviventes. Portanto, existe uma sensação persistente de inacabamento, inconclusão. Essa se faz presente de diversas formas quando aquele ou aquela se põe a narrar o trauma: o empobrecimento das palavras ou o desencontro com essas, assim como a incredulidade de quem ouve ou a falta de vontade de dar algum crédito a quem afirma sobre um trauma, de dar o benefício da confiança. Assim, não se pode esperar de forma simplória, certa coerência narrativa.
Nossa defesas são únicas e pensar que o “empoderamento” protege mulheres e exigir destas condutas combativas é revitimizar ao sobrecarregar estas mulheres, como também ignorar a própria psicanálise, que nos ensina que coerência racional nos escapa e os destinos de nossas defesas de eu, são os possíveis, no um a um. (Embora, o coletivo possa ser um recurso de ofertas para enfrentamentos, a partir de novas inscrições de símbolos, significantes e ideais).
Não seria pedir muito que uma mulher estuprada e que teve que abortar sozinha, precisasse ser muito bem resolvida e forte para lidar com a situação, quando perseguida anos depois? Depois descobrimos que seu filho presenciou a violência sexual, contradizendo o argumento de a minisérie não amarra o ódio dele pela mãe e o afastamento dos dois.
Como psicanalista, considero que nenhuma resposta é exata, não temos como afirmar os efeitos dos traumas em ambos: na maternidade dela após a violência, nem dos impactos psíquicos nele, após ver a cena que sua mãe é submetida, tampouco de ter sido salvo pela estuprador da mãe, que morre em seguida. Aliás, não é apenas a protagonista que sofre violência sexual, ao assistir a cena, seu filho também é vítima de abuso sexual, logo é preciso demarcar que ele fora uma vítima secundária. No caso dele, especificamente, há indícios de um recalque pelo trauma, e o trauma em psicanálise retorna na compulsão à repetição, muitas vezes pela destrutividade (pulsão de morte), buscando elaboração. Portanto, infiro que temos pistas de que marcas psíquicas foram inscritas e que acompanhamos depois, como a dificuldade em lidar com a maternidade (que até então parecia bem amorosa) diante da dificuldade relacional de ambos e talvez da decisão de não mais filhos; e um rapaz frágil psiquicamente, usuário de drogas, muito solitário e triste.
(Demarco o talvez, pois o desejo de não ter o segundo filho pode simplesmente ter sido uma escolha não associada ao trauma, mas relacionada a outros projetos e próprio desejo – legítimo e não patológico).
Em apenas um ponto, concordo com a análise do site nacional: a protagonista é brilhante e é casada com um cara mediano. Mas, a coluna considera que isso é uma contradição e eu, um retrato fiel da realidade da maior parte de nós: muitas mulheres interessantes com homens insignificantes. Nada incomum. Aliás, faltam-me dedos para contar quanta mulheres incríveis conheço e que se relacionam com homens medíocres.
Enfim, considerar a série mais do mesmo é também ignorar que vivemos mais do mesmo todos os dias, que somos enganadas, roubadas, violentadas e morremos pelo mais do mesmo todos os dias, e que seguimos difamadas ao longo de nossas vidas. Basta uma fofoca, uma invenção, e a fulana vai te odiar para sempre, alguém vai dizer que você não é para casar, um grupo vai sentar para falar mal de você, com todas as certezas do mundo. Falar mal de mulheres é algo que deu certo, uma estratégia de relações de poder que edifica o patriarcado. Deu tão certo que existe pessoas contratadas para isso: difamar mulheres (acompanhem o caso de Blake Lively, do filme “É assim que acaba”, que ironicamente é sobre violência contra às mulheres e que uma mulher foi contratada para difamá-la, após denúncia de assédio sexual). Por isso, comecei a coluna falando de tempo e mulheres: nunca estamos a salvo, vivemos o tempo em todo em alerta, seja pelos traumas do passado, como também pelas ameaças e violências do presente.
Se alguém cobra que ela tivesse dado outro destino, que não ao silêncio, não entendeu que descortinar violências não nos protege de nada, por vezes só nos revitimiza. Precisamos então calar? Não. Por isso a aposta no coletivo. Nos movimentos sociais, especialmente os que se propõem feministas.
Um dia li uma frase que adorei “desconfie da sua desconfiança”. É sobre isso. Temos muito, muito que lutar para fissurar esse roteiro determinista imposto para nós e que vivemos sobre ameaça. Quem achou a série exagerada ou um deserviço e, principalmente, quem desconfiou da narrativa da protagonista: desconfie de sua desconfiança.
Enfim,
Que 2025 seja um ano meno violento para nós, mulheres.
Beijos feministas, Bárbara Sordi.
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