Quando falamos sobre temas muito relevantes em nossos diálogos informais, aqui neste espaço, conversamos sobre tópicos de rápida digressão e de mergulho pelas águas da superfície dos assuntos. Sobretudo porque eu quero merecer a entrada confortável de pessoas não especializadas cientificamente nos conteúdos contemplados em nossos debates. Quero que navegantes virtuais de todas as águas compartilhem alguma experiência, em qualquer medida, com o assunto trazido para cá.
Certa vez eu falei aqui da minha perspectiva democrática sobre a leitura em níveis. Eu costumo aplicar aquele raciocínio à escrita. Quero poder conversar também com quem não lê livros técnicos. Quero conversar com pessoas, mediada pela língua escrita. Pessoas transitarão por todos os espaços, chegarão até aqui e eu terei o privilégio de dividir algo que é produto do meu intelecto e das minhas inquietações com elas.
Eu gosto muito de visualizar este cenário: o leitor chega acidentalmente, por alguma rota de navegação digital, começa a leitura, deixa fluir e se sente motivado até o final. Minha mente literária não resiste à tentação de construir cenários, enredos e personagens. Assim navego nestas águas tormentosas, sem a pretensão de construir uma ágora de debates complexos e profundos. Opto pelo cenário de um locus amoenus.
Um dos grandes desafios neste processo é vencer a sedução pelo modo acadêmico de abordagem dos conteúdos; talvez uma marca da profissão do magistério em mim. Mesmo quando estou ministrando aulas, procuro alguma forma de tradução do conteúdo e de aproximação dos alunos com o texto.
Na área jurídica, temos dois métodos de abordagem dos conteúdos: o dogmático e o crítico. Esses dois métodos não são salomonicamente separados. Eles se intercambiam e se complementam. Em regra, trabalhamos com estudo de casos, com o objetivo de fixar o aprendizado e exercitar as técnicas de interpretação e de aplicação do direito. Aqui, pretendo abolir qualquer método que não seja o diálogo ameno, mesmo quando seja preciso enfrentar algum conceito filosófico ou científico.
Neste espaço eu pretendo soltar ainda mais as amarras do método, embora seja bastante difícil quando recorro à citação de algum teórico. Pelo meu roteiro, penso em trazer conceitos importantes com informalidade e leveza. É sempre um exercício de construir-se, construindo.
Hoje, trago à baila um tema muito caro e sério à arena de debate: o racismo. Será necessário o enfrentamento e algumas referências.
Vamos falar sobre o racismo?
Sob o ponto de vista legal, no Brasil, é crime. Das perspectivas sociológica e antropológica, é uma prática que permeia relações de poder. Para fins deste texto, não avançaremos teoricamente sobre a construção sociológica e antropológica do racismo, exceto em uma ou outra passagem, como ferramenta de interpretação e tradução do conteúdo.
No ambiente virtual, que reproduz nossas relações de poder no mundo real, o racismo também se apresenta acirrado e violento, de forma sub-reptícia, insidiosa, odiosa e vil, com o intuito de reproduzir supremacia e poder, pela percepção social das diferentes atribuições a brancos e negros no trabalho, e no modo como se relacionam, de forma profundamente hierarquizada (DAMATTA, 1987).
Há uma semana tenho recebido notificação da nova campanha da Maison Christian Dior, protagonizada pela artista caribenha, de Barbados, Robin Rihanna Fenty. A cantora é sucessora da atriz australiana Charlize Theron, embaixadora anterior de um dos perfumes da maison: o perfume J’Adore. Rihanna, nesta campanha, é a “cara” do perfume, que evoca a estética de uma deusa dourada. O ouro evoca glamour e poder. Penso que é absolutamente desnecessário apresentar Rihanna, cuja fama mundial é evidente.
Rihanna, tal qual Theron, é uma personagem consagrada na cena da arte. Rihanna é uma das cantoras mais bem sucedidas na cena da música pop, além de uma empresária de muito sucesso.
Rihanna, uma bela e bem-sucedida mulher negra no ambiente da indústria cultural, está recebendo comentários racistas no Box de comentários do vídeo de sua campanha, no Facebook.
O conteúdo racista foi flagrado por mim em ao menos dois comentários feitos na postagem da campanha referida aqui [link abaixo]. A usuária do Facebook questiona o “nivel” da maison Dior quando contrata uma “pseudo estrela” para sua campanha.
Eu tenho certeza de que ela e eu não estamos olhando para o mesmo firmamento. Para o céu de talentos que eu olho, Rihanna figura como uma grande estrela. Confiram no Google.
Por qual motivo haveria decadência da Maison Dior, quando substituiu Theron por Rihanna? Theron é mais famosa? Tem mais seguidores virtuais? É mais rica?
Não, não, e não. A expressão vulgarisés*, que a comentarista usa para atacar a maison, expressa racismo.
Theron é mulher, como Rihanna. É bem sucedida e talentosa também. Porém, não haveria nenhum porém, não fosse Rihanna uma mulher negra. Para a comentarista, que escreveu em francês o comentário (suponho que seja francesa), uma sucessora negra para encarnar a deusa dourada não estaria à altura de uma mulher loira. Noto que o comentário pretende disfarçar, mas reitera e afirma de que modo ocorre a naturalização e reificação, também, das diferenças estabelecidas entre mulheres brancas e não-brancas, importando em estruturas desiguais intra-gêneros: os gêneros subalternizados (CARNEIRO, 2003).
O racismo do comentário é absolutamente equivocado em todos os tópicos. Equivalências igualam as duas mulheres em beleza e talento. Decadência, expressão empregada pela comentarista, evoca a noção de classe. Rihanna compõe o seleto clube dos artistas bilionários. Além disto, o comentário é equivocado do ponto de vista do mercado. Mulheres negras e poderosas se sentem representadas por Rihanna. Isto amplia o marketing estratégico da maison Dior para essas consumidoras. Rihanna tem dedo de Midas nos negócios que assume.
No cenário racial do Brasil, que reproduz a estrutura do racismo no mundo, quando prestamos atenção à persistência dessas desigualdades, encontramos altos índices de desigualdades entre homens e mulheres, assim como é possível identificar também as desigualdades entre as próprias mulheres, especialmente aquelas vinculadas à classe e raça (SIMÕES; MATOS, 2010). Podemos supor que, mesmo atingindo o posto que Rihanna atingiu nos mercados da música e moda, o racismo impõe subalternidade onde há igualdade. Isso é asqueroso.
A Maison Dior lançou uma carta genial nesse baralho, fechando todos os critérios de um bom marketing: Rihanna é muito ouvida, muito seguida, muito copiada e muito inspiradora em sua incrível historia de vida.
Parem de fingir que estamos falando de classe, de pessoas très chic, de cara da riqueza e de outros subterfúgios linguísticos. Rihanna tem o phisique du rôle para a série de perfumes dessa campanha. Rihanna é uma deusa dourada. Brega, de baixo nível, infame e démodé é o racismo, ele mesmo.
Sugestõs de conteúdo:
BLUMER, Herbert. Race Prejudice As a Sense of Goup Position. Pacific Sociological Rewiew, I (Spring): 3-8, 1958.
CARNEIRO, S. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Orgs.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, P. 49-58, 2003.
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
GEERTZ, C. Interpretação da cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.
SIMÕES. S; MATOS, M. Idéias Modernas e Comportamentos Tradicionais: a persistência das desigualdades de gênero no Brasil. In: SOUZA, Marcio. F. de (Org.). Desigualdades de Gênero no Brasil: Novas Idéias e Práticas Antigas. Belo Horizonte: Argumentum, 2010.
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