Assisti ontem à noite a um dos Concertos Afro-Brasileiros da Caixa Cultural São Paulo, com as cantoras Edna d’Oliveira e Edineia de Oliveira e os músicos Marco Bernardo e Patrícia Ribeiro, projeto que tem em sua programação composições de autores brasileiros inspiradas em temáticas africanas e afro-brasileiras. Com curadoria de Fábio Caramuru, pianista e compositor, e de Lígia Fonseca Ferreira, professora e pesquisadora, doutora pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, com tese sobre Luiz Gama (um dos mais combativos abolicionistas de nossa história), hoje docente do Departamento de Letras (área de língua e literatura francesa) da UNIFESP-Universidade Federal de São Paulo. O repertório teve peças instrumentais e vocais do paraense Waldemar Henrique, Hekel Tavares, Ernâni Braga e Villa-Lobos, além de uma série de canções africanas, como o canto fetiche de macumba escrito em 1919. Ao final, houve um bate-papo com os artistas, mediado pela professora Lígia F. Ferreira.
As irmãs Edna D’Oliveira (soprano) e Edinéia de Oliveira (mezzo-soprano), duas das cantoras líricas brasileiras de maior destaque da atualidade, têm trajetórias muito bonitas, de luta e superação. Nascidas em família negra e pobre em Minas Gerais, seu pai foi “adotado” aos 8 anos por uma família branca e rica e sua infância e adolescência foram marcadas pela escravidão. Só conseguiu os primeiros sapatos aos 17 anos.
Encantadas com a música erudita após ouvirem a lendária soprano norte-americana Jessie Norman, as duas irmãs começaram a cantar em corais amadores de Belo Horizonte (MG). Edna, a primogênita, aos 14 anos, resolveu se inscrever em uma escola de canto lírico levando Edineia a acompanhá-la tocando violão. Na hora do exame de admissão, o maestro percebeu o enorme potencial de Edineia. Resultado: ela foi aprovada em primeiro lugar e Edna ficou em terceiro. Anos depois, as irmãs, com muito sacrifício, largaram as faculdades de Arquitetura e Matemática e foram para São Paulo estudar Música na Unesp e até hoje são os maiores destaques de sua geração e se preocupam em formar novos cantores líricos afrodescendentes.
Edna brilha tanto nos palcos de ópera como em concertos. Aclamada por suas interpretações de Villa-Lobos, especialmente das “Bachianas Brasileira nº 5” e das “Canções da Floresta do Amazonas”, vem interpretando estas obras nas principais salas brasileiras e nos Estados Unidos, onde foi chamada de “a Kathleen Battle brasileira”, após sua estreia no festival Brazilian Classics, do Arhst Center of Miami. Seus recentes triunfos no palco lírico foram Bess (Porgy and Bess) e o de Madalena (Andrea Chenier). Já Edineia vem se consagrando por atuações memoráveis em papeis como Lola/Santuzza (Cavalleria Rusticana, Mascagni), Sacerdotiza (Aïda, Verdi), M. Larina (Evguêni Onieguin, Tchaikovsky), Laura (La Gioconda, Ponchielli) e Dalila (Samson et Dalilah, Saint-Saëns). Recebeu o Prêmio Carlos Gomes (2005) por sua performance como Iara (Bug Jargal, Malcher), que cantou no Festival de Ópera do Theatro da Paz, em Belém do Pará. Também colheu aplausos calorosos do público e crítica por suas atuações em Sea Pictures (Elgar), no Rio de Janeiro, e ao viver Serena (Porgy and Bess, Gershwin), em São Paulo.
Engajadas na luta contra a discriminação racial, as duas artistas contaram suas trajetórias e lembraram, em conversa após o concerto, que Joaquina Maria da Conceição Lapinha – a primeira cantora lírica brasileira que virou celebridade – era negra e se apresentou em várias cidades de Portugal entre 1791 e 1805, inclusive no Teatro de São Carlos, de Lisboa. Mas era obrigada a disfarçar a cor de sua pele – que os europeus julgavam “inconveniente” – com tinta branca. Mesmo assim, até hoje não foram descobertos retratos que mostrem suas feições. Só existem citações de seu nome em documentos da época, principalmente programas teatrais, partituras e críticas musicais. Sua origem é tão misteriosa quanto sua morte. O pouco que se sabe dela é que, por ser negra, teve que vencer diversos entraves sociais para que pudesse deleitar as plateias cariocas e lusitanas.
No espetáculo de ontem, mais uma vez ficou evidente a importância do Pará no cenário operístico nacional. Além do compositor Waldemar Henrique no repertório e da trajetória fulgurante de Edineia de Oliveira incluir o palco do Theatro da Paz, foi destacada a presença do cantor (baixo) e professor Eduardo Janho-Abumrad, que também já se apresentou no Festival de Ópera do Theatro da Paz, em A Flauta Mágica, e na histórica montagem de O Guarani, interpretando Dom Antonio de Mariz, quando do sesquicentenário de Carlos Gomes, em 1986, após a reforma do Theatro da Paz, com a participação de Niza de Castro Tank, Ivo Lessa, Nicola Dimarzio e Benedito Silva. Eduardo Janho-Abumrad, ao lado do pianista João Moreira Reis, é professor, ainda, de outros nomes do canto lírico parauara, como o barítono Mílton Monte e a contralto Gabriella Florenzano.
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