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O ano é de 2024 e pela primeira vez na história (que conhecemos, pelo menos) da humanidade um país inscreveu em sua constituição o direito ao aborto. A França, no último dia 4 de março – quatro dias antes do Dia Internacional da Mulher – foi o primeiro país do mundo a garantir às mulheres o direito básico que é ter domínio do seu próprio corpo. O ano é de 2024 e o aborto ainda é tratado como tabu quando, na verdade, é simplesmente uma escolha pessoal e a sua proibição é apenas uma das milhões de provas nefastas de como a mulher ainda é tratada como um ser inferior nas mais diversas sociedades. Religião é uma escolha pessoal. Valores morais também. Estes jamais deveriam suprimir direitos. Não é porque uma mulher numa posição de privilégio, com acesso à educação formal, trabalho com remuneração digna, apoio familiar, não consiga pensar na possibilidade de se submeter a um aborto no caso de um deslize contraceptivo, que ela tem o direito de dar opinião na escolha de uma outra mulher. Ponto. E muito menos um homem, seja lá qual for a função dele nesta vida, pelo fato da sua “classe” ser a responsável pela opressão feminina desde os relacionamentos sexuais até as condições salariais e o abandono parental. Nenhuma mulher comemora fazer um aborto. De todas as experiências que já li e escutei sobre nesta vida, não houve nenhuma que não tenha sido uma escolha acompanhada de sofrimento e dor. Os militantes antiaborto deveriam gastar tempo e energia para lutar por equidade, por um mundo em que todas as meninas e mulheres tenham seus direitos garantidos, em que homens sejam educados a não replicarem comportamentos violentos em todas as instâncias e que, se o fizerem, sejam punidos.

O ano é de 2024 e um famoso jogador de futebol brasileiro é condenado, em Espanha, por estupro. Pena reduzida. O parça mais famoso e multimilionário – que deve uma fortuna para o fisco do Brasil – pagou para isto acontecer. O instagram do criminoso convicto tem milhões de seguidores e milhares de mensagens de apoio, lamentando que “um pequeno erro” tenha atrapalhado sua carreira esportiva. A vítima? Só Deus para saber o sofrimento da vítima em constatar que, mesmo condenado pela justiça e preso, o estuprador vai um dia sair e viver a vida como se nada tivesse acontecido. Não é preciso ser santo ou ter um santo forte para saber que a vítima não vai viver um dia da sua vida que não seja afetado pelo crime hediondo ao qual foi submetida, que mesmo alguns milhares de euros são capazes de apagar.

O ano é de 2024 e os maiores xingamentos, na língua portuguesa, ofendem mulheres, mesmo que direcionados a homens. A mulher que é a puta. O homem é o filho da puta, vai pra puta que o pariu, mas a puta mesmo é a mulher. No caso, a mãe. Isto em países em que se fala o português, onde sabemos que a maioria das famílias são providas pelo trabalho feminino, sejam elas monoparentais ou não. E, ainda assim, para designar alguém sem coragem, em Portugal, por exemplo, usa-se a gíria, em inglês, pussy, que significa vulva, e que é completamente descabido levando em consideração que, na maior parte dos casos, quem tem coragem de enfrentar a vida e sustentar uma família são justamente as pessoas que têm uma.

O ano é de 2024 e muita gente que ler este texto vai considerá-lo agressivo, mesmo eu não tendo escrito nem 1% de toda a violência que nós, mulheres, milenarmente sofremos, e que basicamente tudo o que somos e que fazemos é julgado através do gênero e, consequentemente, diminuído, silenciado e apagado pela sociedade patriarcal. “Não precisa tanto”, mesmo que, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 o país tenha batido o recorde de feminicídio, com 1463 casos registrados, e a Amazônia ter índices ainda acima da média nacional, com uma média de 1,4 mulher morta a cada cem mil habitantes. Temos que ser doces e ficar contentes com as flores oferecidas por um mercado que cobra o dobro por seus produtos cor-de-rosa, temos que ser guerreiras quando não aguentamos mais ter de aceitar a normalidade em arcar com os trabalhos domésticos invisíveis – nossas “obrigações” – nem lutar o dobro, triplo por uma remuneração inferior à de um homem.

Nunca podemos esquecer a máxima de Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Que a cada segundo que passa nos tornemos as mulheres que queremos ser sem aceitar nada menos do que entendemos merecer. Que tenhamos todas o privilégio de escolher o caminho que nos apetece nesta vida. Eu amo tornar-me mulher a cada dia, ter sido criada – no mais amplo sentido que a palavra criação pode carregar – por uma mulher e ter mulheres imprescindíveis em minha vida, no choro e no sorriso. Espero que chegue um 8 de março em que me sinta, antes de qualquer coisa, segura em ser mulher.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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