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I

Os desafios que apresentava a celebração jubilar dos 50 anos do Encontro de Santarém (1972-2022), Encarnação e Libertação para os tempos de hoje na Amazônia a partir de 1972, eram enormes. Aquele acontecendo apenas depois de sete anos do encerramento do Vaticano II, exigia uma impostação histórico-conciliar robusta, latino-americana (Medellin) assim como das linhas gerais do Magistério da Igreja universal desde aquele tempo até aos nossos dias.

Tarefa esta desproporcionada para o que foi a preparação do IV Encontro e a celebração do mesmo em quatro dias. O conteúdo transbordava o tempo e o espaço de reflexão, sinodalidade, de oração sobre estes 50 anos da história da Igreja de Cristo na Amazônia brasileira durante meio século. Anos atormentados sem dúvida, mas ao mesmo tempo de uma riqueza eclesial em diálogo com o mundo atual como nunca! Tempos criativos antecipando o futuro ao mesmo tempo que davam orientação ao nosso presente pós-conciliar.

Por outra parte, a participação dos Bispos membros da Amazônia legal (70) dos quais (40) participaram com ausência significativas de muitos Bispos da mesma Amazônia (30), quase um terço, evidencia uma diferença notável significativa a ter em conta com relação aos participantes de Santarém I (1972), todos eles Bispos!  

Como na Igreja o ministério episcopal se distingue essencialmente e não só em grau de qualquer outro ministério da comunidade eclesial, “presidindo em nome de Deus ao rebanho do qual são pastores como mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado e ministros para governar com autoridade” (LG 20 c), é necessário ter em conta este fato ao referir-nos a Santarém II.

Por outro lado, segundo testemunhas, participaram da votação do texto 80 votantes dos quais aproximadamente eram 40 Bispos. É importante ter em conta este dado para avaliar a autoridade dos que votaram e qual o grau de autoridade magisterial que possuem tanto o texto aprovado de Santarém II como mais especificamente as numerosas e cada uma das propostas pastorais tão variadas.  Não todas logicamente com o mesmo peso eclesial, transcendência pastoral, autoridade magisterial e provistas de uma sadia e autêntica sinodalidade. Esta exigência se impõe pela própria natureza das coisas assim como pela condição magisterial do Episcopado…

Desde aí podemos perguntar: Podemos atribuir o mesmo peso magisterial ao voto de um Bispo cujo ministério na Igreja é especificamente distinto daquele dos leigos igualando-o de fato com o destes?

Outra questão de base é conhecer quem designou os Padres e os leigos que participaram no Encontro IV de Santarém. De      quem receberam o poder de representar a Igreja na Amazônia brasileira?

Esta representação foi gerada no seio de uma sinodalidade de todo o Povo de Deus da Amazônia e da escuta do mesmo através de consultas sérias e com capacidade para alcançar essa representatividade? Ou foram outras modalidades à margem da consulta às bases as que se introduziram?

Por último, enquanto aos assessores (as), que tipo de participação sinodal houve por parte do povo de Deus na eleição dos mesmos? Porque às vezes se corre o risco gravíssimo para todo o corpo eclesial de serem sempre os mesmos assessores sem respeitar o legítimo e necessário pluralismo, mais ainda numa Amazônia enriquecida por tanta variedade e transbordante originalidade. Foi banido eficazmente o sempre possível, o vergonhoso “pensamento único”?

São perguntas que o povo da Amazônia levanta espontaneamente, de modo natural e que precisam respostas, explicações… numa palavra, sinodalidade sadia e robusta!

Mas aproximemo-nos confiantes das Diretrizes de Santarém 1972 aplicando-as aos tempos de hoje: Encarnação e Libertação!

Já foi lembrado como é difícil abranger os 50 últimos anos tão ricos e complexos ao mesmo tempo tanto da Amazônia como da Igreja e do mundo! A tarefa que agora se nos impõe é a de descrever as Diretrizes assumidas por Santarém II a partir de Santarém I, este praticamente aberto no momento em que se fechavam os portões da Basílica de S. Pedro na finalização do Vaticano II. Nada fácil!

Porque se trata, ao mesmo tempo, de ter em conta de um modo básico a influência das encíclicas, exortações papais nascidas dos Sínodos pós-conciliares, junto com as reformas variadas e a renovação da Igreja, do seu Direito canônico, do Catecismo da Igreja Católica tendo em conta também a Conferência Episcopal dos Bispos no Brasil, a instituição de novos ministérios, protagonismo dos leigos, diálogo com o mundo moderno, ecumenismo, os desafios da casa comum… em relação com estas diretrizes de Santarém:  Encarnação na realidade e Evangelização libertadora!

II

Primeira Diretriz: “Encarnação na realidade”.

Em Santarém II se convida “a uma conversão ao Verbo encarnado que exige da Igreja um total entrosamento com a realidade” … Para fugir a subjetivismos não sadios, trataremos desde o início de pautar a nossa reflexão sobre as orientações certeiras do Papa Francisco na Evangelii Gaudium sobre o modo da transmissão missionária do evangelho na comunicação da mensagem salvadora.  Abrangem os números 234 – 245 da Exortação apostólica.

A EG (2013), seis anos depois de Aparecida, é uma ajuda indispensável e autorizada para a reflexão em chave missionária a ser aplicada ao modo como se expressa Santarém II sobre a evangelização e a maneira sobretudo de comunicar a mensagem do evangelho como aparece nos números citados na EG com relação a primeira Diretriz Encarnação na realidade.

O objetivo de Santarém foi e continua sendo missionário! Também 50 anos depois. Os princípios do Papa devem ser aplicados com relação a Encarnação na realidade, para interpretar, compreender, completar, corrigir e aplicar Santarém hoje!

Apresentar Santarém em chave missionária enquanto a maneira de comunicar a mensagem se resume numa frase “a partir do coração do evangelho” (Ibid 34). O Papa Francisco motiva esta afirmação, acenando ao fato não infrequente de que algumas partes da doutrina moral da Igreja (muito mais da pastoral como modo de transmissão da salvação), ficam fora do contexto que lhes dá sentido. Exatamente como acontece em Santarém II.

O Papa insiste em que o “problema maior ocorre quando a mensagem que anunciamos aparece então identificada com tais aspectos secundários que apesar de serem relevantes, por si só não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo.” (Ibid). Portanto, “Convém sermos realistas não dando por suposto que os nossos interlocutores conhecem o núcleo essencial” (Ibid).

Isto se evidencia de modo claro quando Santarém II querendo explicar a fundamentação da primeira Diretriz de Santarém I “aponta a Encarnação do próprio Cristo, convidando a uma conversão ao Verbo encarnado que exige da Igreja um total entrosamento com a realidade” (Santarém II).

Perguntemos, em que consiste esta conversão? Evidentemente segundo Santarém II não no arrependimento nem na fé. “Arrependei-vos e crede no evangelho!”  (Mc 1, 15), diz Jesus. Portanto, não no evangelho que salva! Somente na ética, nos comportamentos pastorais, na práxis. Aqui se encontra completamente ausente o “coração do evangelho” (EG 34).

Quer dizer, se prioriza a moral sobre o evangelho, a lei sobre a graça! Numa palavra, o pragmatismo pastoral amazônico sobre o indicativo da boa nova: “O reino de Deus chegou! O Deus-homem salva! Alegria! Crede no evangelho”! Daí que a decisão soberana pelo imperativo categórico, pela exigência pastoral é impossível gere o único Homem Novo! (Ef 2, 5.15) (Cfr 264 de EG). Nem portanto, os novos caminhos para a evangelização da Amazônia! Assistimos aqui a anulação, a eliminação absoluta da graça de Deus (Gal 2, 21)!

Vejamos agora alguns conteúdos desta razão prática de Santarém II desligada do conhecimento da Encarnação de Deus, do Filho “em quem habita toda a plenitude de Deus corporalmente” (Col 2, 8).

 A conversão ao Verbo encarnado é, segundo Santarém II uma “conversão que exige da Igreja um total entrosamento com a realidade” (S II 5).  “Entrosamento”, porém, pode entender-se como a ação de encaixar-se uma realidade em outra realidade ajustando-se totalmente à mesma, engolida por esta. Assim compreendida, a Encarnação iria contra o núcleo do evangelho e da revelação cristã.

Uma visão tão redutiva esta anula por completo a eficácia missionária de Santarém. Amazônia seguirá sendo terras e águas não tocadas pela redenção libertadora de Deus-homem. No caso, a medida da evangelização é a Amazônia, as suas culturas, os seus sonhos. Não os sonhos de Deus para o homem nem a decisão soberana Dele sobre a Amazônia.

Aqui se impõe o recurso aos textos do Vaticano II sobre encarnação, abundantes, ricos, profundos e bem atuais.  Dentre eles podemos destacar um par de números. Um da GS, documento bem intramundano, aberto as estruturas seculares, no número 22 e o outro do Decreto missionário Ad Gentes 3, missão do Filho, na mesma linha de insistência missionárias do Papa Francisco em EG. Devido às convergências entre os dois textos e por falta de tempo para um desenvolvimento mais extenso, assinalaremos unicamente alguns elementos do número 22 da GS. (Encarnação de Deus e revelação do homem).

 “Em realidade, começa esse número, o mistério do homem se esclarece unicamente no mistério do Verbo encarnado” (Ibid). O Verbo encarnado, o reconhecimento do mesmo é o único capaz de iluminar o homem, o homem amazônico, ou melhor, o mistério do homem. Se não partimos deste princípio de antropologia cristã o resto, também a Amazônia, sua identidade, culturas, sonhos, conversões se perdem no âmbito do absolutamente desconhecido. Esta primeira observação de antropologia- cristológica nos adverte sobre a transcendência do que está em jogo para a missão, para a Amazônia e para o mundo.

O acesso ao mistério do homem está vinculado necessariamente ao acesso real ao mistério do Verbo encarnado. Ambos os mistérios têm uma relação constitutiva e indissolúvel propiciada pela decisão soberana de Deus sobre seu Filho feito homem e Nele sobre a humanidade toda! Por isso, “ninguém viu a Deus! Foi o Unigênito do Pai quem o revelou”! (Jo 1,18) Não existe outra forma de acesso a Deus nem ao homem, tampouco ao amazônico, senão no Verbo encarnado!

Assim, à luz de Evangelii Gaudium 34, Santarém II desliza do fundamento para a areia movediça ao identificar a mensagem que anunciamos com aspectos secundários, porém, relevantes!

Em concreto, o “entrosamento total com a realidade, apesar de relevante, por si só “não manifesta o coração da mensagem de Jesus Cristo” (Ibid). Mensagem por tanto, secundária por muito significativa que seja!

Se o mistério do homem unicamente se pode conhecer através do mistério do Verbo encarnado, a dimensão missionária de Santarém I e II fica absolutamente ineficaz e estéril. No entanto o texto de GS 22 e outros são o único ponto de partida para a encarnação do Evangelho na realidade amazônica! Nenhum outro!

O coração do evangelho, pois, é Cristo quem “ao revelar o mistério do Pai e do seu amor, manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe abre para a sublimidade da sua vocação” (Ibid).

Esta é a identidade do coração do evangelho. E isto tem consequências. Sim! Necessariamente! Mas o acontecimento não se pode identificar com uma das consequências do mesmo: Práxis pastoral, variedade de proposta pastorais tão numerosas em Santarém II! Numa palavra, tampouco com o moralismo, com o pragmatismo, com a letra que mata!

III

Encarnação – Redenção

Esse mesmo número iluminado de GS 22 nos diz com luz meridiana: “Cordeiro inocente (Verbo encarnado) na entrega libérrima do seu Sangue nos mereceu a vida. Esta é a vida, a única vida plena! A vida para a Amazônia! Nele Deus nos reconciliou consigo. (2 Cor. 5, 18-19; Col 1,20-22), entre nós e nos libertou da escravidão do demônio e do pecado… Assim qualquer um de nós pode dizer: “O Filho de Deus me amou e se entregou a si mesmo por mim!” (Gal 2,20).

Este é o sentido da Encarnação:  A redenção, a reconciliação do homem com Deus no Sangue de seu Filho! E neste Sangue com toda a criação (Col 1, 20). Fora dessa Encarnação redentora e reconciliadora não tem “entrosamento completo”, nem realidade, nem tem evangelho, nem missão, nem homem segundo Deus em Cristo, nem salvação, nem fraternidade dos povos amazônicos! Nem paz! Nem casa comum!…  

Pelo contrário, se trata de uma Encarnação esvaziada, traída, convertida em produto qualificado do mercado abundante de antropologias, cristologias, eclesiologias, cosmologias, utopias sublimes (!), libertações (De que?,  para que?) e de religiões cada vez mais abundantes e bizarras… 

“Com seus sofrimentos nos deu exemplo para seguir os seus passos (Mt 16, 24; Lc 14, 27). Ele abriu um caminho que, seguindo-o, a vida e a morte se santificam e adquirem novo sentido”. (Ibid)

Estes são os novos caminhos para Amazônia! Os caminhos que arrancam do único caminho: do caminho a Jerusalém, do Caminho do Calvário, do único caminho: o do amor cristão como “único eixo cultural”, capaz de construir uma cultura da vida” (A 543) para Marajó, Amazônia, América … O resto não é Encarnação do Verbo, nem centro do evangelho!…

Evidentemente um documento que não compreende o sentido, a direção do mistério da Encarnação do Filho de Deus como redenção, resgate da escravidão do pecado, da morte e do demônio, é inútil esperar algo consistente para a evangelização integral, para os sonhos e para as conversões da Amazônia. Assim “o total entrosamento na realidade da Amazônia” se converte em sarcasmo!

Uma opção pela Amazônia em chave missionária como é a de Santarém II “por estar obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidão de doutrinas (propostas de ação no caso) que se intentam impor à força de insistir” (EG 35) é obsoleta e envolve o perigo não só de perder este tempo de graça para a Amazônia, mas de que esta perda do tempo da salvação tenha para ela consequências irreparáveis!

IV

O que é a “Realidade”?

Avancemos mais um passo. E o que é a realidade na qual a Igreja da Amazônia tem que realizar o seu entrosamento completo por uma conversão ao Verbo encarnado? (Santarém II)

O entrosamento total na “realidade” à luz da Encarnação do Filho de Deus tem que ser entendido cuidadosamente. Assim, não pode ser entrosamento total com a realidade aquele que constitui a Encarnação do Verbo e, portanto, a missão da Igreja na Amazônia, precisamente porque essa “realidade” está transida de pecado, rebeldia e condenação…!

Na verdade, Deus assume para si na sua Encarnação a maldição da humanidade, se solidariza com ela e a resgata como ela é: prisioneira e vendida ao pecado! Mas não se acomoda ao pecado! Pelo contrário, o implode desde dentro fazendo-se carne! A doutrina dos Concílios de Constantinopla II e Calcedonense se resume assim: “Reconhecemos o único Verbo em duas naturezas inconfusas, imutáveis, indivisas, inseparáveis” (Cal. Denz 148; Const II, C.7).

Por isso, a “realidade” não absorve nem dilui a Divindade nem o amor do Deus-homem. Por isso não pode ser um “entrosamento completo” Ele é, pelo contrário, o “homem perfeito” na sua natureza humana! Não absorvida por nada. Ele não é um ser assumido pela “realidade”, marcada sempre pelo pecado”. “O Filho de Deus tem-se unido amorosamente na Encarnação com cada um dos homens! É um dos nossos. Semelhante em tudo a nós menos no pecado!” (Cfr GS 22).

Como Santarém II não fala de pecado, mas o silencia estranhamente, abre um espaço insuperável à confusão, à ocultação teológica ao mesmo tempo que descaracteriza por completo a missão da Igreja na Amazônia, a própria identidade da Igreja “em cuja face resplandece brilhante o fulgor de Cristo encarnado” (LG 1).

De modo positivo: “Deus é a realidade fundante. Ele não é um deus só pensado ou hipotético, mas um Deus de rosto humano. Ele é o Deus conosco. O Deus do amor até a Cruz” (discurso inaugural de Bento XVI em Aparecida). Nele toda a criação suspira pela sua libertação plena. Criação tão profanada agora por cristãos e pagãos!

V

O Coração do Evangelho

Nos surpreende e nos enche de receio que no Documento de Santarém II não se fale uma palavra de pecado. Repetimos que é possível tenha sido devido à falta de tempo para uma reflexão de tanta transcendência e desafios tão graves como exigia a preparação dos 50 anos jubilares de Santarém.

Mas nem por isso é menos grave esse silêncio! E precisamente por ferir de modo mortífero um aspecto constitutivo da revelação e da missão cristã! Sem esquecer que tratamos de atualizar a primeira opção de Santarém II, “Encarnação na realidade”, a ausência, o silenciamento, a não existência do pecado é um esquecimento que reduz a Encarnação ao nada. Assim é como se passa de lado da realidade da Amazônia deixando-a ausente, sem identidade, a ser libertada, transformada, regenerada!

A insistência do Papa Francisco em colocar a missão no centro e entendendo por esta a transmissão do “coração do Evangelho” que consiste em que “todos pecaram e todos necessitam da glória de Deus e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus a quem Deus expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé” (Rom 3, 23 -25 a) nos alerta sobre a gravidade extrema do silêncio sobre o pecado em Santarém II!

O Concílio no Decreto missionário “Ad Gentes” ecoa com força este “coração do Evangelho” dizendo: “Cristo é a Verdade e o caminho que o anúncio do Evangelho descobre a todos quando faz ressoar nos ouvidos as palavras do próprio Cristo: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”. “E quem não crê já está julgado” (Jo 3, 18), palavras de Cristo que são ao mesmo tempo palavras de juízo e de graça, de morte e de vida.

Porque unicamente dando morte àquilo que é velho podemos alcançar a nova vida. Isto é válido primeiramente para as pessoas, mas também para os diferentes bens deste mundo (Culturas, tradições, religiões, valores…) que estão marcados ao mesmo tempo pelo pecado do homem e a bênção de Deus: “Porque todos pecaram e todos necessitam da glória de Deus!” (Rom 3, 23) (AG 8).

A esta luz, eliminando a realidade constitutiva do homem como pecador, Santarém II anula o coração do Evangelho: o amor redentor, a graça, a esperança do pecador… A cristologia de Santarém II ao não ser soteriologia, não é cristologia!

Com outras palavras, utilizando as de Paulo em Gal, 3, 21: “Não invalido a graça de Deus; porque se é pela lei que a justiça vem à luz, então Cristo morreu em vão”. Isto equivale a arrancar o coração do Evangelho, quer dizer, o amor crucificado, o único capaz de purificar as estruturas de violência e de morte e criar novas estruturas de vida e de paz! Os únicos novos caminhos para a Amazônia!

Sem esquecer que a carga pesada de um moralismo sufocante como o de Santarém II somente desaparece quando cai o véu que impede a compreensão das Escrituras pela conversão ao Senhor (Cfr 2 Cor 3,14-17).

É verdade que Santarém II por duas vezes nos números 6 e 7 fala da necessidade do querigma, mas não tira as consequências imediatas do querigma que são: arrependimento e fé no Evangelho. Novamente desliza para as obras da lei em vez da alegria do novo nascimento!

VI

Neopelagianismo em Santarém II?

A forte impregnação voluntarista do Doc. de Santarém II não simula, portanto, os traços fortes de um neopelagianismo, “heresia de hoje junto com o gnosticismo”, como afirma Papa Francisco.

Que as coisas são assim o evidenciam textos como o que segue à citação da AG 8 acima lembrada: “Ninguém por si mesmo, pelas suas próprias forças se liberta do pecado e se eleva sobre si mesmo; ninguém se liberta completamente da sua fraqueza, da sua solidão ou da sua escravidão (Sto. Irineu, ADV. Haer. III, 15,3) Todos têm necessidade de Cristo… libertador, salvador…” (AG8).

Silenciando o pecado e a salvação, que fica de cristão em Santarém II?

Para uma descrição dramática tanto do gnosticismo como do neopelagianismo do qual tratamos, leia os números de fogo da EG dentro do item “mundanismo espiritual” (93-97!) Para ambos, nem Jesus Cristo, nem os outros interessam verdadeiramente. “Manifestações ambas de um mero imanentismo antropocêntrico”! (Ibid 94). Obscuro mundanismo que se expressa em muitas atitudes aparentemente opostas, mas com a mesma pretensão de “dominar o espaço da Igreja”! (95)

Neste contexto se percebe a ausência em Santarém II de uma sincera e ampla autocrítica destes 50 anos.  Isto pode ser grave para toda a Amazônia! “Pode que estejamos alimentando a vanglória como aqueles que se contentam com ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar!” (96)

“Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa!”. “Tú és esse homem”! É a palavra de Natán a Davi! Tú tens que morrer! Muitas conversões estamos precisando na Amazônia. Mas todas se resumem nesta: na pregação do Reino: “Arrependei-vos e crede no Evangelho!” Sem a aceitação confiante dessa palavra não tem mais Igreja na Amazônia! (Mc 1,15 paralelos).

Em vez disso, prossegue o santo Padre, aí mesmo, entretemo-nos vaidosos a falar sobre “o que se deveria fazer” – o pecado do deveriaquismo – como mestres espirituais e peritos de pastoral que dão instruções ficando de fora! “Cultivamos nossa imaginação sem limites e perdemos o contato com a dolorosa realidade do nosso povo fiel” (Ibid 96) que não tem computador, que passa fome e que está profundamente fragilizado na alma e no corpo!

Para mais aproveitamento remetemos a Gaudete et exultate onde com especial vigor o Papa fustiga o gnosticismo e sobretudo o neopelagianismo em páginas inesquecíveis para quem queira arrepender-se e nascer de novo!

Na esteira lógica da reflexão sobre a primeira prioridade de Santarém, está claro que sem este “coração do Evangelho” (Papa Francisco) não existem caminhos para a Amazônia nem para a sociedade amazônica! Tudo, absolutamente tudo se fecha na estreiteza da falta absoluta da esperança que não decepciona “porque o amor de Deus (Dele) foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo…” (Rom 5,5).

VII

A evangelização do Amor crucificado

Nenhuma palavra em Santarém II para este amor amando o mundo humano! Com amor divino! Uma Igreja com amor, o amor crucificado de Deus, o único capaz de purificar as estruturas e a realidade da Amazônia irredenta, não encontra espaço explícito no documento! Daí a ocultação estranha da Palavra da Cruz, “loucura para os que se condenam”, também dentro da Igreja pelo silenciamento da mesma. Mas isto nos aflige no mais íntimo de nosso ser de amazônidas e de cristãos, porque para nós essa palavra é poder de Deus para salvar e libertar a quem crê. Assim como para salvar a tudo o que envolve aos salvos: família, sociedade, meio ambiente, cultura, estruturas de pecado, casa comum … (1 Cor 1,18).

Esta lógica da Cruz sempre foi escandalosa, por definição. Sempre o foi! Também hoje! Mas, por outra parte, é a única que se apoia no poder de Deus e que se identifica com o seu amor crucificado!

Aparecida nos repete que as estruturas estão essencialmente constituídas por pessoas que amam ou odeiam. Dessas pessoas dependem as estruturas da sociedade, da sua interação com a natureza, do equilíbrio ou da alteração da mesma!

Esse é, portanto, o centro dinâmico que determina o gloriar-nos nesse poder de Deus, amor crucificado, comunicando-o na alegria essencialmente constitutiva da missão! É aquele amor, finalmente, que transforma também as estruturas violentas (e são tantas!). E capaz também de gerar novas estruturas na Amazônia!

Poder de Deus, sabedoria da Cruz, especificamente para toda a Amazônia, para o nascimento do homem novo, do tão ardentemente desejado “único homem novo amazônida” em Cristo Jesus (Ef.), pelas comunidades verdadeiramente missionárias no desenvolvimento crescente desse homem novo e “onde esteja tudo interligado”, numa palavra, na nova Amazônia por todos sonhada!

Amor crucificado que a nível cósmico o expressa a Carta aos Colossenses 1,20: “E reconciliar por Ele e para Ele todos os seres, os da Terra e os dos céus, realizando a paz pelo Sangue da sua Cruz!”

“A radicalidade da violência só se resolve com a radicalidade do amor redentor!” (Aparecida 543). Somente! Não existem substitutivos, condicionamentos ou distinções! São Paulo é consciente da impossibilidade de evangelizar de forma nenhuma se não “for em Cristo Crucificado!” (1 Cor 2,2). Textos como os de Santarém II nos fazem violência para que voltemos os olhos de uma vez “para Aquele que transpassamos! (Jo 19,37; Zc 12, 10; Ap 1,7; Jo 3,14-15).

“Procurando, diz Paulo, que a nossa fé não se baseie sobre a sabedoria dos homens, mas sobre o poder de Deus” (1 Cor 2,5), quer dizer, na radicalidade do amor redentor. Esta é a suprema instância crítica do Cristianismo e do verdadeiro humanismo! Assim como a verdadeira evangelização encarnada na Amazônia, como o da Querida Amazônia, do documento final da Laudato Sii e da Fratelli Tutti…!

Evangelizar sobre o amor de plena doação como solução ao conflito deve ser o eixo cultural “radical” de uma nova sociedade amazônica. O indicativo pastoral radical para evangelizar de modo autêntico é o amor de plena doação!

Esta é a única evangelização encarnada numa Amazônia dilacerada pelos conflitos, nas terras e águas ensanguentadas pela violência, segregando morte de modo incessante, destruindo de modo sistemático a vida com impactos imediatos em toda a criação…!

A transformação do conflito em paz na Amazônia encontra o seu dinamismo, o seu sentido unicamente a partir do “eixo cultural” radical de uma nova sociedade, de uma nova Amazônia, quer dizer, o amor crucificado de Deus e sintetizado como projeto pessoal irrenunciável na afirmação de Paulo: “E vivo a vida presente (Com suas contradições, impactos e absurdos) na fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por Mim!” (Gal 2,20). Evidentemente na comunidade eclesial missionária! Para que assim não fique anulada a graça de Cristo! Não existe outro eixo cultural possível para a Amazônia nem para o mundo! (Aparecida 543; 538).

Dom José Luis Azcona Hermoso
OAR. Bispo Emérito da Prelazia do Marajó, Doutor em Teologia Moral pela Universidade Lateranense de Roma. Referência na luta pelos direitos humanos e o combate ao tráfico de pessoas, de armas e de drogas, Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Pará, Prêmio Internacional Jaime Brunet para a Promoção dos Direitos Humanos, outorgado pela Universidade Pública de Navarra, e Prêmio João Canuto, concedido pelo Movimento Humanos Direitos, por sua luta contra a exploração e abusos contra crianças e adolescentes, entre muitas outras honrarias. Profundo conhecedor da Amazônia, vive há quase 40 anos no arquipélago do Marajó (PA-BR). Em 2009, após anos de suas reiteradas denúncias, a Assembleia Legislativa do Pará instaurou CPI que investigou 25 mil casos e apurou o envolvimento de políticos e empresários na prática de pedofilia. Aos 82 anos, continua lutando bravamente pelos necessitados e levando a fé e o amor de Deus a todos, ensinando o perdão, a solidariedade e a compaixão. Dedica toda a sua vida às comunidades mais pobres e é incansável na luta em defesa da vida e dos direitos humanos e de cidadania. Um gigante pastor, sacerdote e profeta.

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