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Sou um notívago. Pensei por alguns minutos antes de escrever isso. É que muitas vezes, ser notívago quer dizer passar a noite na esbórnia, em bares, na farra. Não é meu caso. Durante muito tempo acordava antes das seis e corria pelas ruas. Isso passou. O tipo de trabalho ao qual me dediquei e minha curiosidade me fizeram passar a dormir depois das duas da manhã, diariamente. Trabalho com música, jornalismo, teatro, literatura e tenho uma verdadeira compulsão por informação. Há sempre muitas novidades a conferir. Penso sempre no que posso estar perdendo ao dormir. Há que escrever, pensar, dizer. Pensei nisso lá pelas duas da manhã em que larguei de um livro ou de um filme e fui até a janela dar uma olhada na rua. Senti aquele vento fresco que bate à noite, uma brisa que dá alento após a quentura do dia. Tenho alguns poemas que falam dela, a noite. Um deles: Esta noite que passou, ventyou forte, as janelas batiam, impacientes. De manhãzinha colhi diamantes na roseira do quintal. Tenho, também, um trecho da peça “Abraço”, um dos textos que mais gosto, que escrevi. O personagem divaga sobre gostar de estar acordado à noite, atravessando madrugadas. O texto diz: Prefiro a madrugada. A madrugada é solitária e solidária. Por isso, minha companheira. Esse silêncio quebrado pelo apito do guarda noturno, anunciando à solidão, a sua passagem. Guarda noturno, senhor do escuro, do silêncio, do mundo adormecido, dos jasmineiros dos quintais, dos bancos nos pátios, do nariz gelado do cachorro. Prefiro a madrugada cheia de corpos inanimados, com a respiração pausada, pesada. Alguns suando debaixo das cobertas. Gosto de reinar também sobre essa multidão de corpos.

Há uma espécie de rame à noite, um conjunto de ruídos feitos por milhares de aparelhos de ar condicionado, perceptível, claro, em ruas internas, onde há menos trânsito. Olho e os prédios estão escuros, aqui e ali, algum outro notívago, jovens estudando para alguma prova, ali, parece, uma reunião de amigos e de vez em quando algum pedestre, solitário, vai a caminho de uma parada de ônibus, talvez, ou sua casa. Aqueles carros todos, estacionados, estão em paz, aguardando a luz do dia para serem levados nessa torrente absurda que é nosso trânsito. Penso se há alguém fazendo amor nesse instante. Um casal tem uma DR, uma conversa fundamental, sei lá. O tal rame ao qual me referi é constante e forma uma espécie de silêncio em que a brisa balança as folhas em uma calma sonolenta. Porteiros noturnos dormem quando não deviam. Vigias passam com aquele apito cujo som nos deixa seguros. Acho que entre três e quatro da manhã temos o pico da noite, seja para quem dorme, está acordado, quem está dentro de aviões na pista para decolar ou barcos atravessando a baía. Quase cinco, os primeiros pássaros começam a cantar. De início é um canto melancólico, espaçado, em um ritmo lento e preguiçoso. E vêm os periquitos com sua farra matinal botando os madrugadores para fora da cama, mal humorados até que encontram aquela manhã resplandecente que provoca imediatamente um sorriso feliz. Quanto a mim, já estou dormindo desde as duas, talvez. Nas raras vezes em que o cérebro se põe a trabalhar contra o sono, saio da cama, leio um capítulo, escrevo alguma coisa, ensaio verdadeiros discursos mentais, absurdos, às vezes em outra língua, volto e durmo tranquilamente. Como hoje, por exemplo, quando escrevi estas palavras. Boa noite.

Edyr Augusto Proença
Paraense, escritor, começou a escrever aos 16 anos. Escreveu livros de poesia, teatro, crônicas, contos e romances, estes últimos, lançados nacionalmente pela Editora Boitempo e na França, pela Editions Asphalte. Foto: Ronaldo Rosa

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