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Domingo desses saí cedo para passear por Belém. Domingo é dia de respirar a cidade com calma, sem correria, sem tanto trânsito. Domingo Belém se mostra melhor, se despe do véu das pressas alheias, rebela-se com a condição de coadjuvante entre as nossas tarefas para lutar pelo protagonismo que jamais deveria ter perdido. Domingo, enfim, é dia de ver a cidade à vontade, sem maquiagem, cabelo arrumado ou enfeites supérfluos, com a beleza lírica das mulheres felizes quando vestidas com roupas de ficar em casa.

O que vi de dentro do carro, contudo, me entristeceu. Além dos tantos problemas que (de tão rotineiros) já não causam espanto – tais como o acúmulo de lixo, o excesso de pichações, o mau estado dos prédios históricos, a falta de civilidade, os carros estacionados sobre as calçadas e a quantidade assustadora de pessoas desamparadas cuja esperança sobrevive da pouca caridade que pode surgir de um semáforo vermelho – o que vi foi um cidade carente de amor.

Antigamente tínhamos uma relação mais afetuosa com Belém, tínhamos por ela mais carinho e mais respeito. Gostávamos de vê-la e de ver o tempo passar por ela. Andávamos mais por suas ruas, caminhávamos sem medo e até botávamos nossas cadeiras na porta para usufruir do prazer de simplesmente estar ali, na frente de casa, no bairro querido, interagindo em verdadeiras redes sociais. Hoje tenho a impressão de que apenas moramos em Belém, já não a habitamos mais.

A violência, o medo e a urgência de tudo nos tomaram a sensação de pertencimento, nos tornaram estranhos na cidade em que nascemos ou escolhemos para viver, estranhos no ninho, pode-se dizer, usando como sugestiva referência o famoso filme de Milos Forman que deu a Jack Nicholson o Oscar de melhor ator em 1976.

O poeta, cronista, teólogo e cardeal português José Tolentino Mendonça, atual Prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação da Cúria Romana, escreveu um poema que bem traduz esse sentimento, chamado Não deixes um grande amor:

“Aos poucos apercebi-me do modo

desolado incerto quase eventual

com que morava em minha casa

assim ele habitou cidades

desprovidas

ou os portos levantinos a que

se ligava apenas por saber

que nada ali o esperava…”

Assim estamos em Belém, muitos de nós, vivendo aqui desoladamente, de modo quase eventual, num movimento inercial, descuidado e estéril que finda por relegar a cidade a segundo plano, cenário sombrio de um futuro cada vez mais distante.

É preciso reagir, é preciso amar Belém, resgatá-la, salvá-la do ostracismo, do quase sequestro de que tem sido vítima há décadas. E isso pode começar de maneira simples, sem grandes custos, sem projetos faraônicos ou promessas vazias que nunca se materializam.

Um primeiro passo, quem sabe, seria recuperarmos o prazer de viver a cidade, de estar nas suas ruas e praças, ao menos nas poucas horas vagas de que dispomos. Nesse sentido, lembro, por exemplo, das ruas de lazer da minha infância, logradouros fechados ao trânsito de veículos em dias específicos, para que todos pudessem brincar, passear, lanchar, paquerar ou simplesmente apreciar a cidade. Tão singelo, tão barato e tão fácil de fazer, sobretudo num lugar em que ainda resta uma considerável vegetação a nos prover abençoadas sombras (não se pense, por obséquio, em fechar uma das pistas da Doca nas manhãs e tardes de domingo, naquela aridez saárica, para espalhar insolação e desidratação; aí mesmo é que não há amor que resista…).

Outra ideia que pode ser interessante é ocupar as praças, regularmente, com apresentações das excelentes bandas que estão sempre à disposição de quem as convida. Guarda Municipal de Belém, Polícia Militar do Estado, Corpo de Bombeiros Militar, Exército, Marinha e Aeronáutica possuem músicos talentosos, e suas bandas estão sempre a procurar oportunidades, dispondo-se a tocar gratuitamente, com imensa generosidade e muito bom gosto musical.

São gestos aparentemente pequenos, pouco efetivos, pueris até, mas que podem criar consistência se abraçados coletivamente. Experiências similares e exitosas tem sido promovidas pela Diretoria da Festa de Nazaré na Praça Santuário, mensalmente, por meio do projeto Na Praça com Maria, que oferece concertos na Concha Acústica, venda de comidas típicas e de artesanato. As reações tem sido efusivas e elogiosas, muitas delas mencionando a saudade da Belém que gostávamos de acalentar.

Não é difícil levar isso adiante, basta ter vontade. Se não der certo teremos o orgulho de ter tentado e, no mínimo, poderemos dizer que por alguns momentos a nossagente sofrida despediu-se da dor pra ver a banda passar cantando coisas de amor.

Albano Martins
Albano Henriques Martins Júnior é paraense, nascido em Belém em 1971. Advogado cursando especialização em Literatura na PUC/RS (EAD). Guarda de Nossa Senhora, foi membro da Diretoria da Festa de Nazaré entre 2014 e 2023, Coordenador do Círio no biênio 2020/2021, os anos da pandemia. Mantém no Instagram uma página recente sobre livros (ler_e_lembrar).

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