Publicado em: 23 de março de 2017
Ontem, o blogueiro Eduardo Guimarães foi levado coercitivamente para prestar depoimento na sede da Polícia Federal em São Paulo, por decisão do juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba (PR), em um inquérito que apura a divulgação antecipada da condução coercitiva de Lula na Lava Jato no ano passado. Trata-se de um gravíssimo atentado à liberdade de expressão e à Constituição Federal.
Desde o fim dos anos de chumbo, época em que aos oposicionistas se aplicava a tortura nos porões da ditadura, não acontecia um fato desse naipe: o blogueiro foi acordado às 5h da madrugada pela PF, que o conduziu coercitivamente a título de testemunha, em um inquérito no qual figura como acusado. E a polícia não esperou o advogado de defesa chegar para começar o depoimento. A distorção foi claramente proposital. Como acusado, ele tem o direito de ficar calado. Já como testemunha, é obrigado a falar.
Guimarães é autor do Blog da Cidadania, no qual costuma criticar o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, o presidente da República, Michel Temer e a Operação Lava Jato. A PF, o Ministério Público Federal e o juiz Sérgio Moro – que tão importante contribuição têm dado ao País desvendando os esquemas lesa-pátria praticados pelos vendilhões da nação -, desta vez extrapolaram em muito. Humilharam, subjugaram e desrespeitaram os direitos humanos e de cidadania de um brasileiro, alegando que ele não é jornalista e faz política em seu blog.
O juiz Sérgio Moro, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal consideraram que a condução coercitiva não feriu o direito constitucional ao sigilo de fonte, por entenderem que a proteção serve apenas para quem exerce a profissão de jornalista, ainda que sem diploma. Afirmam que Guimarães não é jornalista e que seu blog é um veículo de propaganda política.
A força-tarefa da Operação Lava Jato diz que há provas de que o blogueiro informou diretamente a investigados a existência de medidas judiciais sob sigilo e ainda não cumpridas. Que foi candidato a vereador pelo PCdoB pela cidade de São Paulo e, no cadastro do TSE, o próprio investigado se autoqualifica como comerciante e não como jornalista. E mais, que “não é necessário diploma para ser jornalista, mas também não é suficiente ter um blog para sê-lo”.
Com efeito, nem todo blogueiro é jornalista, assim como nem todo jornalista é blogueiro.
Ora, não importa que ele seja ou não jornalista profissional. É totalmente irrelevante. Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal, no dia 17 de junho de 2009, ao julgar o Recurso Extraordinário (RE 511961), interposto – vejam só a flagrante contradição! – pelo Ministério Público Federal e pelo Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão do Estado de São Paulo, assentou que é inconstitucional a exigência do diploma de jornalismo e registro profissional no Ministério do Trabalho como condição para o exercício da profissão de jornalista.
Todo cidadão brasileiro tem direito à liberdade de opinião e de expressão, assegurada pela Constituição de 1988. Tal direito implica a liberdade de manter as suas próprias opiniões sem interferência e de procurar, receber e difundir informações e ideias por qualquer meio de comunicação e independentemente de fronteiras.
A liberdade de expressão é um direito que pertence a todos. Não são permitidas distinções com base em nível de instrução, raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, origem nacional ou social, propriedade, nascimento ou outro estatuto.
O direito à distribuição da informação e de ideias é o aspecto mais óbvio da liberdade de expressão. É o direito a dizer a outros o que se pensa ou tem conhecimento, quer em particular ou através da mídia. Mas a liberdade de expressão tem uma finalidade mais ampla. Autoriza a qualquer pessoa acesso à pluralidade de informação e a diferentes pontos de vista. Inclui ler jornais, ouvir debates públicos, ver televisão, navegar na internet, obter informação na posse das autoridades públicas.
O direito à informação surgiu como um novo direito, distinto mas inseparável do direito à liberdade de expressão, que não é aplicável apenas à informação e a ideias consideradas úteis ou corretas.
A Comissão dos Direitos Humanos da ONU há anos acentua que o termo “expressão” é generalizado e não limitado em nível político, cultural ou artístico. Abarca inclusive expressões controversas, falsas ou mesmo chocantes. O simples fato de uma ideia causar desagrado ou ser considerada incorreta em absoluto justifica a sua censura.
O que a Constituição protege, sobretudo, é a liberdade de expressão e a manifestação de opinião, que se referem ao conjunto da sociedade. Como agência das Nações Unidas com mandato específico de promoção da liberdade de expressão e, consequentemente, da liberdade de imprensa e da liberdade de informação, a UNESCO considera esses direitos fundamentos cruciais para democracia, desenvolvimento e diálogo, e como pré-condições para proteção e promoção de todos os outros direitos humanos. A Organização também advoga a independência da mídia e o pluralismo como pré-requisitos e fatores principais de democratização e construção de paz e tolerância.
A Constituição Federal brasileira garante aos cidadãos o amplo acesso à informação a partir de variadas fontes, dentro de um ambiente democrático, que respeite as liberdades de expressão e de imprensa.
Durante a Segunda Cúpula das Américas, os chefes de Estado e de Governo reconheceram o papel fundamental do direito à liberdade de pensamento e expressão, e assim surgiu a Relatoria Especial da OEA – Organização dos Estados Americanos, criada para promover a consciência pelo pleno respeito do direito à liberdade de expressão e informação no continente, em consideração ao papel fundamental que esse direito tem no fortalecimento e desenvolvimento do sistema democrático e na proteção aos demais direitos humanos. Durante a Terceira Cúpula das Américas, celebrada em Quebec, no Canadá, foi ratificado o mandato da Relatoria Especial e todos os signatários (entre eles o Brasil) se comprometeram a apoiá-la e auxiliá-la.
A relação intrínseca entre democracia e expressão foi bem delineada por Owen Fiss, professor da Universidade de Yale, para quem o fim da liberdade de expressão não é proporcionar a realização individual, mas sim preservar a democracia e o direito do povo de, enquanto entidade coletiva, decidir qual vida deseja viver. [FISS, Owen. Free Speech and Social Structure. Iowa Law Review, n. 1405, v. 71, 1986. p. 1409-1410.].
Por fim, mas não menos importante, é bom lembrar o que dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 220:
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”
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