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Na última semana estive na Dinamarca. Minha pesquisa acadêmica foi selecionada e convidada a ser apresentada na Universidade de Copenhagen na European Summer School in Cultural Studies que, neste ano, teve como tema “Art in Common(s) – Understanding Art and Communality” (Arte em Comum (Bens Comuns) – Compreendendo a Arte e a Comunidade), na Universidade de Copenhagen. Diante de uma plateia desmascarada – ali não é mais obrigatório o uso de máscara em nenhum ambiente, aberto ou fechado, com exceção do aeroporto, e mesmo assim depois de uma “linha sanitária” pintada no chão antes da porta de acesso à sala de embarque, onde já é uma zona com leis internacionais – pude, depois de tanto tempo, ver as expressões faciais, as reações de uma plateia diante da profunda miséria que acomete o Marajó e que tem como uma de suas consequências o abuso e a exploração sexual de crianças, adolescentes, vulneráveis; e também diante do meu relato de como as artes, a ciência, e a investigação científica no campo artístico são tratadas no Brasil: um problema secular, com uma trágica herança colonialista e que vem perdendo inúmeras de suas tão suadas conquistas nos últimos anos diante de tanto regresso na área do conhecimento e da cultura, desencadeada pela legitimação do discurso do ódio e do preconceito por esta aberração de extrema direita que chegou ao poder, que claramente se vale do slogan partidário de 1984, de George Orwell: Ignorância é força.

As artes são construídas no dia-a-dia, na comunidade, são manifestações políticas através de um meio estético, e mesmo em suas facetas mais empíricas podem se beneficiar da Academia e da epistemologia que propõe, que fundamenta as disciplinas artísticas, que abre possibilidades para as suas mais diversas aplicações, suas reflexões e propagações. A educação, em nenhum grau e área de conhecimento, deveria ser elitista. Num mundo ideal, a Universidade seria o lugar onde os filhos das famílias mais abastadas e os filhos dos porteiros, das empregadas domésticas, estariam em pé de igualdade para desenvolverem seus futuros e suas comunidades. Sabemos que o Brasil está longe, muito longe deste mundo ideal. Longe quando os filhos da classe trabalhadora não conseguem nem terminar o ensino fundamental por falta de transporte que os leve a uma escola mais próxima, quando ela existe. Longe quando, os que chegam no ensino médio, muito dificilmente conseguem vagas no ensino superior pela discrepância de qualidade de ensino entre as escolas públicas e particulares. E cada vez mais longe quando um ministro critica a possibilidade de um estudante pobre se beneficiar de um incentivo público para ter acesso à faculdade. E mesmo depois de todas essas impossibilidades, aqueles que quase por um milagre conseguem persistir na vida acadêmica são taxados de baderneiros e maconheiros por outro ministro, pelo simples fato de cumprirem a sua obrigação: ter pensamento crítico e desenvolverem tecnologias. E, claro, não aceitarem e muito menos corroborarem um discurso obscurantista qualquer.

O acesso à arte é um direito comunitário, por isso a importância de estudá-la. A arte pode ser entretenimento, mas o entretenimento que não provoca reflexão só aliena a comunidade de questões urgentes. Debater arte na Academia não significa considerar só o erudito. Muito pelo contrário. A cultura popular, muito tempo ignorada, principalmente nos contextos colonialistas em que as manifestações do povo eram desvalorizadas, é o que mais nos ensina e nos faz avançar nos dias de hoje. Se reclamamos do sucesso do funk carioca, por exemplo, com suas letras cheias de palavrões, sexistas e com apologia às drogas, devemos ter a completa noção que são produto de comunidades completamente negligenciadas em todos os aspectos, secularmente violadas em corpo e alma. O povo canta, dança, pinta o que vive. E as classes dominantes vão até o chão em suas festas achando muita piada naquilo tudo sem sequer entender a sua responsabilidade na agressividade liberada naquelas letras, muito menos perceber a profundidade do que aquilo representa.

Alguém me pergunta se eu nasci no Marajó. Respondo que não. Se tivesse lá nascido e crescido em situação parecida com as das crianças relatadas em meu documentário, provavelmente não teria a oportunidade de estar ali, mesmo com a bolsa a mim concedida. Digo que sou muito privilegiada em meu país, e então perguntam se sou rica. Não, muito muito muito longe de ser. Quem me dera. Entretanto sou filha de uma classe trabalhadora que teve acesso à Universidade e que me proporcionou acesso à educação e isto é um privilégio enorme no Brasil. Os nórdicos se entreolham. É muito estranho para eles, que são pagos para estudar num curso superior, conceber que o básico do básico é privilégio.

Devemos conversar. Devemos debater. Fora e dentro da Academia. Devemos fazer tudo isto em comunidade, e repensar o acesso e a produção de arte. Devemos falar e falar e falar entre nós todos. É preciso, no Brasil, recuperar este hábito que virou sinônimo de guerra em 2018. Confesso eu que excluí muita gente da minha vida virtual e real pela necessidade de manter minha saúde mental, porém esta falta de diálogo, de análise, só fortalece a ignorância, e ignorância é força, mas não nossa. Não precisa ser PhD para perceber isto. Nossas comunidades precisam gritar suas dores, suas lutas, e enquanto não conseguirmos as mudanças administrativas e governamentais que possibilitem uma vida digna a todos, que a arte seja ferramenta para isto.

(Foto: Gabriella Florenzano)

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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