O juiz Airton Portela, da 9ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Seção Judiciária do Pará, tomou uma decisão que desagradou as partes, mas está certíssimo. Em resumo se trata de fazer, mas do modo correto. Em decisão liminar, ele garantiu as obras de derrocamento do Pedral do Lourenço, mas proibiu a emissão de licenças para trechos da hidrovia Tocantins/Araguaia, até que sejam resguardados os direitos de indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Uma audiência de conciliação está marcada para o dia 23 de abril de 2025, às 11h. O Ministério Público Federal, autor da ação, deve aditar a inicial, complementando a argumentação, juntando novos documentos e confirmando o pedido de tutela final, em quinze dias.
Durante mais de três décadas, o Pará lutou para que o Sistema de Transposição de Tucuruí – com duas eclusas, ligadas por um canal intermediário com 5,5 Km de extensão – restabelecesse a navegabilidade no rio Tocantins, interrompida pela construção da usina hidrelétrica, que criou um desnível de 74 metros no rio. A obra finalmente foi inaugurada, no final de 2010. Um ano depois, a outorga de uso das águas para o funcionamento das eclusas – as maiores do Brasil – foi feita pela ANA (Agência Nacional de Águas), mas até hoje não é possível o tráfego regular de comboios, isto porque o projeto de derrocamento do Pedral do Lourenço (eliminação do conjunto de pedras para aumentar o calado), já com licença ambiental expedida, recursos garantidos no Orçamento Geral da União e em fase de licitação, foi retirado do PAC, o dinheiro destinado a outra finalidade e até o processo licitatório suspenso, provocando falências de empreendimentos e o consequente desemprego dos trabalhadores paraenses. Diante da situação, a Alpa, a siderúrgica da Vale projetada em Marabá, e o polo metalomecânico permanecem apenas como sonho e reivindicação do setor produtivo.
O empreendimento tem como objetivo a retirada de rochas ao longo do rio Tocantins para viabilizar a navegação segura no trecho Marabá-Belém em períodos de estiagem. Entre os impactos constam os peixes, atividades de pesca e praias de nidificação de quelônios, além dos direitos territoriais dos habitantes tradicionais da região, como as vinte comunidades ribeirinhas que vivem ali e têm na pesca a principal fonte de sustento. No período de cheia, é feita por meio de redes espalhadas no rio e, durante a seca, com anzóis e redes em meio às rochas nas corredeiras formadas pelo pedral. Para o MPF, o derrocamento afetará diretamente 300 Km do corpo hídrico e, consequentemente, toda a biota que dele depende, incluindo áreas de relevante patrimônio ecológico e comunidades ribeirinhas. Contudo, os ribeirinhos relatam que não têm sido reconhecidos como povos tradicionais, além do que são excluídos da consulta prévia. Ademais, os pesquisadores apontam insuficiência das ações previstas de compatibilização das obras com os usos de abastecimento da água, atividades produtivas, transporte fluvial e recreação relacionadas às comunidades.
Para garantir a navegação durante todos os meses do ano no rio Tocantins é preciso aumentar sua profundidade, com a dragagem – retirada de material solto no fundo do rio – e o derrocamento, que é a escavação das pedras. O Pedral do Lourenço é uma formação rochosa no município de Itupiranga, entre Marabá e Tucuruí, ao longo de 43 Km, que impede a livre navegação. Está prevista a dragagem do rio entre Marabá e Itupiranga; o derrocamento propriamente dito, entre a Ilha do Bogéa e a localidade de Santa Terezinha, no Lago de Tucuruí; e dragagem em um trecho de 125 km entre Tucuruí e Baião.
A bacia Tocantins-Araguaia fica na região Centro-Norte brasileira e se estende pelos estados do Tocantins, Goiás, Mato Grosso, Pará e Maranhão, além do Distrito Federal. Apesar da inegável importância social, econômica e ambiental da obra, as repercussões incluem alterações no mecanismo hídrico do rio Tocantins, na ictiofauna e nas atividades das comunidades que vivem às margens das áreas afetadas. O Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) que chegou a ser aprovado pelo Ibama analisa de forma superficial os impactos em um dos rios mais caudalosos do planeta, falhas classificadas como graves por vários institutos de pesquisa, por especialistas e até pelo próprio Ibama, além do MPF e MPPA.
Desde 2010 o projeto de derrocamento do Pedral do Lourenço estava pronto, licenciado, licitado e com orçamento garantido no PAC. De repente, o dinheiro foi realocado, a licitação denunciada, a licença caiu e o projeto sofreu readequação. Quinze anos depois, esgotados todos os pretextos, nenhum avanço. E depois de ter marcado e remarcado várias vezes a licitação da obra, inclusive assegurado que seria feita licitação em regime diferenciado, a fim de agilizar o processo, o governo federal lançou o edital do EVTEA de toda a hidrovia Tocantins-Araguaia, porque descobriu a pólvora: é preciso obter a licença ambiental. E nos últimos anos fez o contrário, fragmentando em trechos.
A construção da hidrovia, que compreende derrocamento, balizamento, sinalização e dragagem do rio Tocantins, vai ampliar as condições logísticas da região, permitir o uso múltiplo das águas, gerar pequenos negócios ao longo de todo o seu traçado e com isso emprego e distribuição de renda, contribuindo para melhorar a cadeia produtiva e induzir o desenvolvimento do Pará. Mais importante, ainda, a Tocantins/Araguaia vai impactar todo o País pela solução no barateamento do frete, tornando competitivos os produtos nacionais no mercado internacional. Mas desfazer a histórica distorção da matriz de transportes brasileira, que privilegia o rodoviarismo em detrimento do aproveitamento do imenso potencial hidroviário, principalmente em plena bacia amazônica, é um desafio extraordinário.
Nos autos, o meio de campo embolado: o Ibama alegou que não é responsável por conduzir as consultas prévias e que esse papel recai sobre os órgãos competentes de proteção jurídica, como o Comitê Gestor Quilombola e a Funai. O Incra, por sua vez, sustentou que atua exclusivamente no contexto de comunidades quilombolas. Já o MPF se insurgiu contra a extensão de 10 Km da área de amortecimento, alegando que em projeto anterior tal distanciamento era de 20 Km e por isso considera a licença prévia para o derrocamento imprestável. Acontece que as duas únicas próximas ao trecho para o qual há licença expedida são as TI Parakanã, a 38 Km, e a Nova Jacundá, localizada a 48 Km.
A decisão judicial (veja a íntegra) enfatiza que as obras no Pedral do Lourenço têm “impacto restrito e controlado, com medidas mitigatórias e compensatórias implementadas ou em processo de implementação, conforme estudos técnicos apresentados.” O juiz Airton Portela considera, ainda, que a não realização das obras “acarretaria prejuízos significativos ao desenvolvimento socioeconômico da região, especialmente considerando a importância estratégica do derrocamento do Pedral do Lourenço para a logística, o transporte de cargas, e mesmo para as populações que vivem às margens do rio Tocantins, que, embora utilizando pequenas embarcações, dependem de sua navegabilidade para abastecimento, escoamento de sua produção, deslocamento para escolas e busca por cuidados médicos, cediço que para acesso a tais localidades, na maioria das vezes, não há sequer vicinais rurais.”
O magistrado determinou que o Dnit monitore o desembarque pesqueiro durante o ciclo hidrológico completo, apresentando projeto e planejamento que evidencie os locais disponíveis para a pesca local durante a derrocagem, de modo a compatibilizar a obra com a atividade pesqueira; que estime o esforço pesqueiro por embarcação e por apetrecho, apresentando levantamento de dados junto às colônias de pesca ou quem lhes faça as vezes; estimativa da movimentação financeira relacionada ao exercício da atividade, considerando os empregos diretos e a representatividade da atividade para a economia local e finanças municipais, a renda bruta e líquida dos pescadores por ano e por mês, e a sazonalidade; que avalie a viabilidade socioambiental e contemplada no Programa de Gestão Ambiental, tanto para o monitoramento ambiental da atividade pesqueira, quanto para a adoção das respectivas medidas de mitigação e compensação.
Pela decisão judicial, as populações que têm a pesca por principal atividade econômica, diretamente impactadas pela viabilização da via navegável do rio Tocantins, sejam ribeirinhas ou quilombolas, deverão ser incluídas no Programa de Monitoramento da Atividade Pesqueira, no Programa de Indenização e Compensação Social e no Programa de Comunicação Social, Programa de Monitoramento da Biota – Subprograma de Monitoramento da Ictiofauna.
O magistrado impôs ao Ibama que não emita licença ambiental ao Dnit para os trechos 1 e 3, destinada à viabilização da via navegável do Tocantins, enquanto não avaliados os impactos sobre a atividade pesqueira praticada pelas comunidades quilombolas e ribeirinhas na calha principal do rio, e até que seja feita consulta prévia, livre e informada ao povo indígena Asuriní, das TI Trocará e Trocará-Doação, bem como às comunidades ribeirinhas que vivem na Resex Ipaú-Anilzinho, PAE Praialta Piranheira, RDS Alcobaça e Purucuí-Ararão, na APA Lago de Tucuruí e nos PAEs Ilha do Carmo, Ilha Tauaré, Ilha Santana de Cametá, Ilha Angapijó, Ilha Grande de Viseu, Ilha Conceição de Mocajuba, Ilha Grande Cametá e Ilha Moiraba.
À Funai, determinou que se abstenha de proferir anuência a qualquer licença ambiental aos trechos 1 e 3 para viabilização da via navegável do rio Tocantins enquanto não elaborado o Estudo do Componente Indígena das TI Trocará e Trocará-Doação, a partir de dados primários, em conformidade com as exigências do termo de referência específico.
Ao Incra, que se abstenha de anuir a qualquer licença ambiental para os mesmos trechos, enquanto não elaborado o Estudo do Componente Quilombola para as comunidades Bailique, Santa Fé e Santo Antônio, Igarapé Preto e Baixinha, Icatu e Porto Grande, Fugido Rio Tucunaré, Umarizal, Paritá Miri, Boa Vista e Umarizal Beira, São Bernardo da Beira, Pampelonia, Tapecuruçu e Araquenbaua, a partir de dados primários, em conformidade com as exigências do termo de referência específico.
Para os fins de efetividade das medidas, o MPF deve apresentar, em 60 dias, cronograma para oitiva das comunidades, especificando-as, indicando datas, locais, procedimentos e representantes, o que será analisado pelo juízo após a oitivas das partes. Em caso de descumprimento, o juiz fixou multa diária de R$10 mil. O Estado do Pará foi intimado para, querendo, participar do feito.
A obra, de importância crucial para o desenvolvimento socioeconômico do Pará, vem sendo postergada e a decisão é eminentemente política. A delonga já causou perdas incalculáveis para a sociedade parauara. Os órgãos federais envolvidos certamente não ignoram as obrigações legais. Ao contrário, talvez justamente contem com o descumprimento delas para ter um pretexto a mais a explicar outro atraso e mais uma promessa vã.
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