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A Reforma da CLT

Por ocasião da lançamento do seu último romance, Caím, o escritor José Saramago afirmou que “a Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”. Parodiando-o, sem compartilhar com ele da mesma ideia, digo que a CLT, com a reforma que lhe foi imposta, passou a ser “um manual de burlas e fraudes”, com as mesmas características de afronta à dignidade da pessoa humana.

Urdida por um Executivo desqualificado e aprovada pelo pior Congresso de toda nossa história, composto por vários parlamentares denunciados em processos criminais, a nova CLT representa um, ou vários passos atrás, um ultraje ao princípio constitucional que veda o retrocesso social.

Além de suprimir e dificultar o exercício de direitos, a CLT reformada traduz um violento golpe na liberdade funcional dos juízes do trabalho, negando-lhes, por exemplo, a utilização de fontes que não sejam as que menciona, além de representar severo entrave à busca da tutela jurisdicional, o que se percebe claramente, por exemplo, na dura regulamentação da justiça gratuita, ou da isenção de custas, o que provocará uma avalanche de execuções inúteis, mormente considerando o fato de que o jus postulandi foi mantido, de sorte que o trabalhador poderá comparecer ao serviço de reclamações e formular sua reclamatória que será atermada, sem a presença do advogado para aconselhá-lo e formular a devida moderação da pretensão, passo em que estará sujeito a custas e honorários sucumbenciais que serão cobrados, sem compensação, no mesmo ou em outro processo em que ostentar créditos.

Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei, além de que a criação de novos verbetes será extremamente dificultada, senão que proibida, tal a extensão dos requisitos criados para permiti-la, desautorizando a utilização de um mecanismo que tanto colaborou para a pacificação e uniformização do Direito do Trabalho. Aliás, olhada com a devida atenção, a reforma da CLT pode ser vista como um revide do legislador ideologicamente comprometido à Justiça do Trabalho, que será limitada, doravante, a adotar o modelo que, ou foi criado por lei, ou por acordo coletivo, preferencialmente, dado este extremamente preocupante, quando se considera que ainda são significativos os exemplos de peleguismo e negociação de direitos por via de sindicatos pouco representativos, o que será agravado pela cessação da fonte de recursos representada pelo fim da contribuição sindical. Não haveria exagero em se afirmar que as Súmulas foram viradas do avesso: tudo o que permitiam foi proibido, ou restringido, este o verdadeiro móvel da reforma.

E o que dizer da generalização da utilização dos acordos individuais? Serão claramente utilizados massivamente e imporão ao advogado trabalhista o ônus de investigar a sua presença na relação entre empregado e empregador, de sorte a não ser surpreendido com a prova de negociação entre as partes, quando for possível.

Afora esses entraves, aqui citados a voo de pássaro, a nova CLT incumbe ao trabalhador a prova da existência de grupo econômico, permite o pagamento de salário inferior ao mínimo mensal, abole o pagamento de horas in intinere, reduz a multa pela não concessão do intervalo intrajornada para o tempo efetivamente despendido, autorizando a frustração do intervalo para repouso e alimentação, tornando graciosa a consequência, cria o regime de tele-trabalho sem qualquer controle, tarifa a indenização por danos morais, em postura contrária à jurisprudência do STF, que julgou inconstitucional dispositivo da Lei de Imprensa que veiculava a tabela a ser cumprida, dificulta sobremaneira a equiparação salarial, aumentando a distância entre paradigma e equiparando de dois para quatro anos e autoriza a disparidade salarial desde que um e outro empregados laborem em estabelecimentos distintos, pouco importando se na mesma localidade.

Tais novidades, citadas de memória, não esgotam o rol das devastadoras modificações impostas à CLT, muito pelo contrário e haverão de sofrer cuidadosa interpretação que atenue os danos impostos aos trabalhadores, em atenção aos mega princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, que constituem fundamentos de nossa República Federativa.

 

Domingos Fabiano Cosenza – Advogado

 

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