Publicado em: 22 de outubro de 2025
O cinema, como arte que tem a possibilidade de recriar a impressão de realidade devidamente antenada como o tempo presente e o futuro incerto, sinaliza que as anunciadas distopias que podem estar por vir já estão na ordem do dia, a exemplo do filme “A Longa Marcha – Caminhe ou Morra”, adaptação de Francis Lawrence para a obra de Stephen King.
A premissa é brutal: nos Estados Unidos, em processo de reconstrução depois de uma guerra interna, adolescentes de cada estado federativo são indicados para participar da Longa Marcha, evento transmitido ao vivo em formato de reality show. Os jovens devem marchar ininterruptamente por centenas de quilômetros, sob a escolta de policiais armados e prontos para disparar nos concorrentes que não conseguem concluir o trajeto e que vão, aos poucos, transformados em cadáveres pelas estradas sem volta.
A via crucis é acompanhada de forma apática por crianças, famílias e outros habitantes das rodovias da morte, devidamente evacuadas para o espetáculo macabro das execuções. Ao final, a morbidez se encerra quando restar apenas um sobrevivente, agraciado com prêmio em dinheiro e um desejo realizado.
Filmes que abordam a distopia marcam presença no cinema contemporâneo, seja na produção cinematográfica brasileira (“O Último Azul”, de Gabriel Mascaro) quanto em produções internacionais (“Crimes do Futuro”, de David Cronemberg). O que chama atenção em “A Longa Marcha” é a atração por Thanatos (personificação grega da morte) por diferentes perfis desesperados e seduzidos pelo lucrativo prêmio que vem embalado como escolha voluntária numa espécie de jornada física em nome de uma meritocracia propagada (sim, a propaganda) pelo patriotismo desvirtuado, encarnado pela figura do Major (Mark Hamill).
Os diferentes perfis são atraídos pela falta de horizontes palpáveis de uma sociedade em reconstrução sob a égide do novo totalitarismo que estimula a marcha da desigualdade social, com representação negra, indígena, gay, oriental, latina e jovens brancos desajustados e sem oportunidades na Nova América.
A naturalização da desgraça alheia por meio de um espetáculo midiático proporcionado pela máquina de moer gente, que é este reality show macabro, proporciona um suspense psicológico intenso com a qualidade de usar diversos movimentos de câmera para agilizar uma narrativa de filme de estrada, que vai eliminando cada representante de um nicho social marginalizado. Os caminhantes são colocados à própria sorte em mais de 480 quilômetros de marcha contínua em asfalto ao sol, chuva, noite e dia, com direito a esgotamento físico, reações de insanidade, delírios, colapsos, hemorragia cerebral e outros sinais de desistência em um pesadelo real.
A sensação de que o fim está próximo suscita o aparecimento da camaradagem entre os poucos que vão ficando para a reta final, que é bem diferente da construção da amizade explorada em “Conta Comigo”, de Rob Reiner, também livremente adaptado da obra literária de Stephen King. Em “A Longa Marcha”, escrito nos anos de 1970, a inspiração vem da paranoia vivenciada pela participação de jovens soldados americanos durante a Guerra do Vietnã. Em “Conta Comigo”, a narrativa é nostálgica, com abordagem sobre a busca de um cadáver, descobertas e conflitos próprios do duro adolescer.
O tom niilista do filme de Francis Lawrence remete a um clássico de Sidney Pollack, “A Noite dos Desesperados”. Com Jane Fonda no elenco, a ação do filme de Pollack se passa na Grande Depressão dos anos 30, ocasião em que um concurso de dança em formato de maratona, acompanhado de grande audiência ávida no voyerismo da decadência humana, testa o limite máximo de humilhação entre competidores na esperança por comida, roupa e dinheiro.
Além dos diálogos certeiros, outro ponto alto de “A Longa Marcha – Caminhe ou Morra” é a direção de atores, com destaque para as atuações de Cooper Hoffman (Raymond Garraty), David Jonsson (Peter McVries), Garrett Wareing (Stebbins), Joshua Odjick (Collie Parker), Tut Nyuot (Arthur Baker), Charlie Plummer (Gary Barkovitch), entre outros em performance coletiva. O filme é um dos mais destacados lançamentos da temporada 2025, sendo já aclamado como um dos melhores do ano.




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