Publicado em: 16 de outubro de 2025
Sozinho no mar sem testemunhas outras que não sua consciência, Santiago podia render-se ao fracasso que parecia infinito – 84 dias sem pescar coisa alguma, num sofrimento tão extenuante quanto a dúvida entre aceitar a derrota ou insistir no combate, não pela perspectiva vã da vitória – para o velho vencer ou perder eram apenas resultados distintos; mas pela dignidade de manter-se na batalha, firme e perseverante ante as próprias fraquezas. No 85º dia, contudo, o solitário pescador fisgou o maior peixe que já vira, metáfora da recompensa que advém da obstinação, mas ainda assim voltou à praia de mãos vazias depois que os tubarões devoraram o gigantesco marlim que vinha amarrado ao barco, tão grande que não cabia a bordo.
A quem o visse regressar exausto certamente viria a impressão de mais um revés, mas Santiago, destituído de vaidade, imune à soberba, tinha em si o gozo doce e inviolável da conquista secreta. Vencera o peixe, subjugara o animal em condições que poucos enfrentariam com tanta coragem. Como prêmio, não a glória e nem a fortuna, mas a amizade sincera e o carinho inocente do menino Manolin, representação lírica da verdade e da virtude.
Em O velho e o mar o talento narrativo de Hemingway traveste filosofia de literatura, apresentando sob a forma de romance o que mais parece um poderoso ensaio sobre a natureza humana, a definição de liberdade enquanto poder de escolha, livre arbítrio, e a consagração de um padrão ético presente em várias outras obras do autor, como é o caso de Adeus às armas e Por quem os sinos dobram – a grandeza do homem está na resistência; pouco importa vencer, muito importa ser digno da luta.
Num contraponto também associado ao mar e seus mistérios, alusão ao fascínio do desconhecido, eterna rendição ao canto das sereias, surge Ahab, o lendário comandante do Pequod, navio baleeiro que Herman Melville usou como uma espécie de arca, abrigando homens de todas as raças, línguas e religiões, de todos os vícios e pecados, liderados por um capitão cuja obsessão beirava a paranoia: perseguir a qualquer custo Moby Dick, a baleia que lhe arrancou uma das pernas, deformando-lhe corpo e alma, numa espiral de vingança e loucura que o tornara insensível ao mal que se poderia abater sobre seus marinheiros.
Enquanto Santiago se comprazia com o triunfo moral e a dignidade do embate, qualquer que fosse seu desfecho, Ahab substituía a vida pela compulsão, obcecado por correr os oceanos até encontrar sua algoz, numa vida que abdicou de sentidos e experiências para desafiar o inatingível, privilegiando a emoção cega em detrimento da razão. Enquanto Santiago enfrentava em solitário os perigos do mar, numa guerra pessoal e instrospectiva, Ahab submetia toda a tripulação aos seus caprichos, como se suas vidas fossem neutras, destituídas de valor intrínseco, meros instrumentos nas mãos do egocêntrico e angustiado comandante.
Como se nota, e como se costuma dizer num quase-clichê, lugar comum, praticamente um adágio popular: a vida é feita de escolhas, e se a arte imita a vida, por óbvio de escolhas também é formada. Na literatura a terra é fértil para a semeadura e colheita dessa liberdade. Se é efetivamente livre e pode escolher, o homem está apto a eleger racionalmente, dentre as opções que lhe são postas, aquelas que lhe parecem mais adequadas, as que mais lhe prometem recompensas, as que lhe podem encurtar os caminhos.
Será mesmo? Será simples assim? Ou haverá paradoxos nesta equação – teses, sínteses e antíteses? Não estaria ínsito na liberdade de escolha o espectro da não-escolha, da perda e, pior ainda, do arrependimento? É que escolher também significa negar aquilo que não foi escolhido. Não à toa, Sartre dizia que a liberdade humana tanto pode ser bônus quanto ônus, dádiva ou fardo, deleite ou sacrifício – a escolha é o altar da liberdade mas também o espelho da perda.
A Fabiano e Sinhá Vitória, em Vidas Secas, foi dado escolher entre a dignidade e a sobrevivência, a submissão aos poderosos ou o enfrentamento da fome. Maria Moura poderia optar pelo claustro da vida doméstica e do subjugo patriarcal, mas preferiu comandar um bando armado para afirmar-se livre. Bibiana, em Torto Arado, dividiu-se entre permanecer na terra ancestral ou romper as amarras do campo para buscar vida melhor longe de suas origens. Macabéa, em A Hora da Estrela, escolheu não escolher, assumindo a vida com passividade tamanha a ponto de se tornar invisível.
Crisóstomo, em O filho de mil homens, escolheu ser pai para além de genitor, optando pela paternidade como um ato de criação e amor, capaz de gerar sentido maior e mais profundo que a mera descendência. Os Joad de As vinhas da ira escolheram aventurar-se até a Califórnia para manter a unidade familiar, ainda que lhes tenha sido árdua e penosa a contenda diária contra a miséria, a xenofobia e a fome.
Em cada opção feita está inevitavelmente implícita uma renúncia, e em cada renúncia escondem-se os fantasmas da incerteza e do remorso, o medo da irreversibilidade do erro. Não há como ser diferente – escolher também é perder, e quanto a isso, embora pareça trocadilho, não há escolha ou alternativa. Enquanto houver vida haverá dúvida e hesitação, mas de igual modo haverá a obrigação de decidir.
O contrário disso é a morte, que Hamlet chegou a imaginar como um “sono libertador”, abandonando a insólita ideia ante o temor do desconhecido: “Quem carregaria fardos, gemendo e suando sob o peso da vida, senão porque o medo de algo após a morte – o país desconhecido de cujas fronteiras viajante algum retorna – nos perturba a vontade e nos faz preferir males que temos a fugirmos para outros que desconhecemos?”
Melhor, sem dúvida, compreender, como o fez o pescador Santiago, que acertar ou errar são apenas resultados, consequências do agir, e que o importante é persistir, seguir adiante, acertando e errando, aprendendo quando possível, inovando quando necessário, acreditando que a vida pode ser generosa, e que a cada retorno do mar haverá um amigo como Manolin a nos esperar na praia.
“Errar é bom,
é bom não ter razão.
Corpo e alma repousam
por nada terem a ensinar.
É morno e doce
como leite de mãe.”
(Merenda, de Adélia Prado)
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