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Instalada há pouco mais de um mês, no Senado Federal, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga as ações, eventuais crimes e omissões contra a saúde pública virou um dos principais assuntos na sociedade brasileira. Os depoimentos de três ex-ministros da Saúde (Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello), além do atual Marcelo Queiroga, evidenciaram equívocos e desatinos que levaram à falta de vacinas contra a Covid-19, por exemplo. 

Contudo, para além do inequívoco interesse público envolvido nos trabalhos da CPI da Covid, uma vez que envolve saúde pública e a vida de todos e todas nós, há um fenômeno novo: a midiatização da sociedade. As mentiras até aqui ditas pelos depoentes, não obstante a condição de testemunhas que os impediria de mentir à Comissão, são flagradas em tempo real e desconstruídas, nas redes sociais e no próprio plenário da CPI, ao vivo e em cores. Outro dado que chama a atenção é a referência que o relator, senador Renan Calheiros (MDB/AL), tem nos internautas que lhe mandam perguntas pelas redes sociais – e ele já fez várias, citando que é uma contribuição de cidadãos, via internet. 

A partir da última semana, o relator passou a contar com um suporte profissional de checagem de fatos, o que lhe permite aferir, ainda no andamento da sessão, a quantidade de contradições, respostas parciais ou mentiras deslavadas ditas pelos depoentes. Nos dois últimos casos, o ex-ministro Eduardo Pazuello, segundo Calheiros e sua equipe, mentiu 15 vezes à CPI; a médica Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, conhecida como “capitã cloroquina”, mentiu ou foi imprecisa 11 vezes em seu depoimento. Mayra foi personagem destacada no episódio da omissão do governo federal ao povo de Manaus, no começo de 2021, que levou à morte dezenas de pessoas por falta de oxigênio, e contradisse o ex-ministro Pazuello ao afirmar que o ministério da Saúde teve conhecimento da falta de oxigênio dia 8 de janeiro – e não no dia 10, como dissera o ex-ministro, dias antes. 

Sociedade midiatizada 

O advento da internet, a partir do começo dos anos 1990, marca profundamente nosso modo de agir e se comunicar, influenciando de forma sensível as novas sociabilidades. No entanto, foi o acelerado desenvolvimento tecnológico da própria web que, a partir do começo dos anos 2000, propiciou o surgimento das plataformas digitais que hoje mobilizam usuários, em todo o mundo, na escala dos bilhões: Facebook (2004), YouTube (2005), Twitter (2006), WhatsApp (2009), Instagram (2010) e Snapchat (2011) – só para citar alguns das mais robustas “redes sociais”. 

O pesquisador José Luiz Braga, em recente artigo, chama nossa atenção para o fenômeno da midiatização da sociedade. Para Braga, “é a sociedade que se midiatiza – que busca e desenvolve processos segundo os quais seus próprios objetivos – os mais variados setores e instituições buscam diretamente táticas, lógicas, linguagens específicas, elaboradas ad-hoc para seus próprios objetivos, acionando potencialidades viabilizadas por tecnologias disponíveis ou estimulando a invenção de tecnologias” (Fonte: https://bit.ly/2RPudqv). Evidentemente, esse protagonismo das organizações sociais e dos indivíduos foi potencializado pelo uso indiscriminado das chamadas “redes sociais. Na prática, na tentativa sair do jugo dos poderosos grupos econômicos de comunicação, acabamos, enquanto sociedade, caindo noutro oligopólio privado: o das plataformas digitais, que atuam em escala global. 

CPI midiatizada? 

Desde sua instalação, a CPI da Covid atraiu para si a atenção de milhões de brasileiros e brasileiras. De forma especial, a cobertura dos trabalhos não é exclusividade apenas das grandes empresas de jornalismo. Não obstante, as redes de televisão aberta seguem sendo os principais meios de comunicação de massa do país. Os dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) indicam que a população acessa o sistema de comunicações pela televisão aberta (97%), mas o uso do celular já está presente em 95% dos lares brasileiros. Números divulgados pela Agência Brasil, em abril de 2020, confirmavam que “o percentual de brasileiros com acesso à internet aumentou no país de 2017 para 2018, passando de 69,8% para 74,7%, mas que 25,3% ainda estão sem acesso” (o que significa, em números absolutos, que 53 milhões de pessoas não têm acesso). “Em áreas rurais, o índice de pessoas sem acesso é ainda maior que nas cidades, chega a 53,5%. Em áreas urbanas é 20,6%”. 

Examinando a cobertura dos telejornais, quando da instalação da CPI, em 27 de abril, o jornalista Maurício Stycer (colunista e crítico de televisão do Portal UOL), observou precisamente as prioridades de cada um dos principais canais, tanto pelo tempo dedicado ao assunto, quanto especialmente pelas escolhas editoriais. Stycer destacou: “O assunto foi destacado na abertura de todos os telejornais, mas o tempo dedicado ao assunto variou muito, dos mais de 13 minutos do “Jornal Nacional” aos três minutos do “Jornal da Band”. Também houve diferenças importantes nos temas sublinhados nas reportagens. O “Jornal da Record” tratou da CPI por 3:35 minutos. Metade do tempo foi dedicado ao imbróglio que antecedeu a abertura dos trabalhos. No “RedeTV! News”, quase metade dos 5 minutos da reportagem foi dedicada à “tentativa de inviabilizar” a CPI por parte dos aliados do governo” (Fonte: https://bit.ly/3fMs7jb).  

Numa sociedade altamente midiatizada (com cerca de 75% com acesso à internet), o evento político e investigativo da CPI da Covid-19 está permeado pela participação do público, tanto na checagem de informações falsas ou mentirosas prestadas pelos/as depoentes, como também na atuação dos Senadores que compõem a Comissão. Até aqui, está patente que o vício das “Fake News”, que tem no presidente da República um dedicado e contumaz usuário, também está presente na bancada governista que faz piruetas estatísticas para tentar defender o indefensável: a tese de que o governo federal agiu em defesa da saúde pública e da vida da população. A ver, as cenas dos próximos capítulos. 

*O artigo acima é de total responsabilidade da autor.

Samuel Lima
Professor doutor na área de "Mídia e Teoria do Conhecimento", pesquisador do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: samuel.lima@ufsc.br 

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