Em 17 de dezembro de 1999, a Assembleia Geral das Nações Unidas designou o 25 de novembro Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher. Passados 22 anos, os dados do 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública são aterrorizantes: por hora, pelo menos trinta mulheres sofrem agressão física. A média nacional é de um estupro a cada 8 minutos. Quatro mulheres são vítimas de feminicídio a cada 24h. Pelo menos uma travesti ou mulher transexual são assassinadas a cada 48h. É um vergonhoso recorde mundial. O dia foi escolhido oficialmente pela ONU, em 1999, para homenagear as irmãs dominicanas Pátria, Maria Teresa e Minerva Maribal, as revolucionárias “Las Mariposas”. Elas foram torturadas e assassinadas nesta mesma data, em 1960, a mando do ditador da República Dominicana, Rafael Trujillo.
O próprio Fórum Brasileiro de Segurança Pública alerta para a imensa subnotificação que cerca a violência sexual no país, fruto do medo, sentimento de culpa e vergonha com que convivem as vítimas, e até mesmo o desestímulo por parte das autoridades.
O desconhecimento das leis de proteção às mulheres, especialmente por quem deveria aplicá-las – como operadores de justiça e profissionais da saúde -, a omissão do Estado e a falta de uma rede de apoio e proteção às vítimas são os principais problemas. Embora a casa devesse ser um local de acolhimento, para muitas mulheres ela é um espaço de violência, de perigo e até de morte, mas o Ministério da Mulher investiu apenas 6% do orçamento previsto neste ano para o enfrentamento à violência contra a mulher, em plena pandemia. A grave omissão resultou no aumento dos casos.
Pesquisa dos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, com apoio da Laudes Foundation, aponta que violências cotidianas no trabalho ainda não são reconhecidas: 36% das trabalhadoras dizem já haver sofrido preconceito ou abuso por serem mulheres e 76% já passaram por um ou mais episódios de violência e assédio no trabalho. Em novembro do ano passado os mesmos institutos divulgaram a pesquisa “Violência doméstica contra a mulher na pandemia”, realizado com apoio do Consulado da Irlanda em São Paulo e da Fundação Heinrich Böll, revelando aumento das agressões físicas e verbais, da violência sexual, dos ataques na internet e do assédio contra mulheres.
O assédio sexual é uma realidade na vida da maior parte das brasileiras: 71% conhecem alguma mulher que já sofreu assédio em espaço público e, ainda mais impressionante, 97% afirmam já terem sido vítimas de assédio em meios de transporte. Os dados são da pesquisa dos Institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, com o apoio da Uber.
A categorização de diferentes formas de violência contra as mulheres como violação de direitos humanos e o reconhecimento de sua prática como um crime contra a humanidade permitem que a denúncia seja questão pública e política.
O estupro é um ato de violência, humilhação e controle sobre o corpo da mulher que se expressa pelos meios sexuais, e deixa eternas sequelas na vida e na saúde das mulheres atingidas, sérios efeitos nas esferas física e mental, a curto e longo prazos. A vítima pode sofrer lesões nos órgãos genitais, contusões e fraturas e até mesmo morte. Outras consequências físicas possíveis incluem gravidez indesejada e a contração de doenças sexualmente transmissíveis. Em termos psicológicos o estupro pode resultar em diversos transtornos, tais como depressão, fobias, ansiedade, uso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático.
O sentimento de medo e insegurança dialoga com os altos índices de violência sexual do país. A maioria das vítimas não registra denúncia na polícia, o que torna as estatísticas mera estimativa.
O machismo no Brasil se configura através do conjunto de condutas construídas e reforçadas culturalmente sobre masculinidade, que glorifica os atributos ligados ao universo masculino e perpetua a desigualdade entre homens e mulheres, forjada em uma ideologia que propõe ser bom e até natural que os homens controlem o mercado, o governo e a atividade pública, e que as mulheres sejam subordinadas a eles. O masculino é associado ao poder, à virilidade e à agressividade. Apesar do modelo hegemônico de masculinidade ser combatido, ainda prepondera a ideia de que digna de admiração é aquela que se auto sacrifica, que é submissa aos homens e que é uma boa mãe e esposa.
As pesquisas mostram que a partir do momento em que a mulher não adere aos valores determinados de um sistema cultural patriarcal, a violência contra ela passa a ser tolerada socialmente: grande parcela da população considera as vítimas de agressão sexual responsáveis, por não se comportarem ou se vestirem de acordo com uma “mulher respeitável” – seja por usar roupas curtas ou andar sozinha na rua em certos locais considerados inapropriados. E ainda há quem sustente a ideia do homem que não consegue controlar seus “instintos naturais”. Ora, é óbvio ser errado achar que uma peça de roupa seja um sinal verde para qualquer tipo de violência, inclusive a verbal. Todas têm o direito de sair de casa da maneira como preferirem, no horário que desejarem e para onde quiserem, sem temer qualquer abordagem grosseira. Desgraçadamente, esse direito jamais foi garantido na prática.
Especificidades do crime de estupro desafiam as instituições do sistema de justiça. Não é fácil obter provas irrefutáveis do não consentimento quando o suspeito é uma pessoa famosa, rica ou poderosa. Se tiver os três adjetivos, então, fica quase impossível. Além disso, as vítimas muitas vezes têm um comportamento que desafia o senso comum: o trauma e a vergonha podem fazer com que se fechem e não denunciem imediatamente, ou que tenham dificuldade em apontar o perpetrador quando se trata de pessoa da família ou conhecida. Nem sempre há marcas físicas da violência ou perturbação emocional, ou um relato absolutamente coerente, mas isso não quer dizer que o crime não tenha acontecido. Levar a sério uma denúncia de estupro não significa condenar sumariamente o suspeito, e sim acolher a vítima, escutá-la, dar credibilidade a seu relato e buscar, através da investigação, a devida elucidação do caso.
É preciso educar meninos para que não desrespeitem, não agridam, não estuprem e não matem as mulheres, e só uma educação igualitária e consciente pode alterar essa dura realidade.
A revitimização constante durante os procedimentos legais – humilhação, julgamento moral, procedimentos de coleta de provas que expõem o corpo violado da vítima a novas intervenções – influencia na baixa taxa de notificação do crime e precisa ser considerada com urgência e seriedade pelas instituições policiais e pelo sistema de justiça. Tão ou mais importante do que qualificar as delegacias especializadas é fazer desse um tema transversal em todas as corporações policiais, em todos os níveis de atendimento. Cada policial militar e cada policial civil deve conhecer as especificidades da violência sexual e receber treinamento adequado a respeito do acolhimento, dos serviços de atendimento disponíveis e do encaminhamento necessário. Os profissionais envolvidos na investigação precisam estar preparados para lidar com esses casos em qualquer delegacia – até porque não é realista acreditar que seja possível instalar uma delegacia especializada em cada município.
É preciso rever os currículos policiais e reformulá-los também a partir da igualdade de gênero. Os operadores da segurança pública e do sistema de justiça criminal devem ser protagonistas na garantia e na promoção da igualdade entre homens e mulheres – inclusive dentro das corporações.
No Pará, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social trabalha em parceria com o Ministério Público e o Tribunal de Justiça, além de entidades de defesa de direitos humanos, e tem articulado meios para proteger e amparar as mulheres vítimas de violência. Com foco na capacitação de agentes do Estado, a Segup vem investindo em cursos especializados em temas como a Lei Maria da Penha, Feminicídio e Estatuto da Criança e do Adolescente. Recentemente, firmou parceria com Instituto de Desenvolvimento Social (Ideso) para proporcionar o curso de “Abordagem Policial para atender às mulheres vítimas de violência doméstica”, oferecido especialmente para servidores da Polícia Militar. Já para os agentes da Polícia Civil, haverá a “Capacitação para o Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Doméstica”.
Nos últimos meses, a ação de maior destaque foi a operação “Maria da Penha”, de iniciativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública e coordenada pela Segup. De 20 de agosto a 21 de setembro, todos os canais de denúncia foram massificados para melhor atender as vítimas de crimes cometidos contra a mulher, como feminicídio, lesão corporal, ameaça, estupro e descumprimento de medida protetiva. Foram 30 dias de operação, coordenada em Belém e Região Metropolitana, que resultou em 2.897 chamadas por meio do Centro Integrado de Operações (Ciop) 190 e em 717 prisões preventivas.
As ações também se estendem à área tecnológica. Em março de 2020, o aplicativo desenvolvido por dois praças da PMPA, ‘SOS Maria da Penha’ veio a público. Com botão de emergência e outras ferramentas de ajuda rápida, inicialmente o aplicativo ofereceu auxílio a 160 mulheres, que solicitaram medidas protetivas.
O secretário de Estado de Segurança Pública e Defesa Social, Ualame Machado, está revisando o Plano Estadual de Políticas Públicas para Mulheres, a fim de incluir estratégias no enfrentamento à violência doméstica, a exemplo da Patrulha Maria da Penha, Inteligência Artificial Rápida e Anônima (IARA).
Ainda falta muito. Os autores de crimes contra as mulheres, em sua maioria, estão livres, leves e soltos. Quando muito, são julgados décadas depois de seus crimes. Isso precisa acabar.
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