Publicado em: 3 de julho de 2025
“Pesado de palavras, emancipado,
Sigo com os passos do mar envolto em peixes
Sigo com a noite que avança entre estrelas
Sigo ao teu lado, oh poeta! a buscar novas palavras.”
(O poema vê o poeta – Encantarias das Palavras, página 157, ed.ufpa, 2017 – João de Jesus Paes Loureiro
A Amazônia poética de João de Jesus Paes Loureiro aportou na Academia Paraense de Letras nesta quarta feira, 02 de julho de 2025. As Icamiabas o trouxeram, pintadas para o ritual festivo. Poromina-Minare, de prontidão, nas escadas de mármore do Silogeu, Mapinguari montando vigilância na entrada e Curupira ensinando, certinho, os caminhos para se chegar.
Adentra com sua densa floresta de palavras, rios, encantarias, envolto em aningas, cipós, mururés e planctos do perau onde repousa a serpente do canal. Chega em comitiva, formada por botos, boi-tingas, Macunaíma, Iara e Jaci, boiunas, Matinta-Pereiras, Curupira e vários mitos gregos-amazônicos, enviados por Zeus e Tupã.
Pede passagem para adentrar no secular prédio das letras e o próprio Silogeu já sonhava com seu ingresso, enaltecendo a representação da sua história. Dois entes especiais: o poeta e a instituição, em suas representações perenes, clássicas, populares e significativas do mundo cultural amazônico, reveladas neste anfiteatro imensamente verde, misterioso e surpreendente.
O clássico Silogeu se abre para receber um dos mais densos imaginário-literário-filosófico-estético-amazônico que se tem registro, produzidos nesta região, percebido e reelaborado pelo tradutor de encantamentos. Sua imortalidade literária se antecipa à imortalidade acadêmica, porque o conjunto de sua obra soube interpretar o estuário amazônico, percebendo o céu enviesado salpicado de estrelas mitológicas falantes desta vasta região florestal.
No desfecho da ditadura militar, o Brasil, ainda pisando em ovos, Paes Loureiro passou a escrever crônicas que o jornalista Eládio Malato, meu pai, publicava em O Liberal.
Conheci o poeta Paes Loureiro na sala de minha casa, Soares Carneiro, 684, eu adolescente, conversando com meu pai sobre a Amazônia.
Por seu livro de poemas, “Tarefa”, destruído pelo Exército, foi preso e torturado pelo regime autoritário, chegando a ser conduzido para o Rio de Janeiro. Por pouco não desapareceu nos porões da ditadura, desfalcando a Amazônia.
Quando concluiu o curso de direito, foi eleito orador de sua turma, mas sua prisão atrapalharia o exercício dessa escolha. Às vésperas da sua formatura, um ofício do Comando Revolucionário do regime militar, representando as três forças reunidas, Exército, Marinha e Aeronáutica, comunicou seu impedimento ao Reitor Aluysio Chaves.
Paes Loureiro estava proibido de se manifestar na cerimónia dos novos bacharéis.
Em nova eleição que não concorreu, novamente foi o mais votado, criando um impasse na Faculdade com os universitários. A solução aceita pelas partes, foi a ideia de que o poeta seria mantido como orador, porém sem dar qualquer palavra. Assim foi feito e seu silencio ecoou mais forte que o barulho de sua voz se pronunciada.
Com João se constrói a esteticidade amazônica estendida como função essencial do homem enquanto vetor de identidade da sociedade dispersa, fortalecedora dos entrelaçamentos da comunidade.
Esse Jesus amazônico, ser aberto de vários universos, alma incorporada à manifestação viva da arte, é aquele que percebe, sente, traduz e reinventa o mágico mundo amazónico. Aquele que oferece visibilidade ao invisível engenho da condição humana engendrada pela perfeição divina, ou mesmo aquele que se infiltrou no mundo vivo da matéria que a transcendência dos signos revela.
Paes Loureiro é o vento que ressoa por galhos entrecruzados da floresta, pernas que correm sobre as folhas secas das trilhas que circundam samaumeiras, asas que batem acima das copas verdes, amarelas, vermelhas e encontram as chuvas que escorrem por entre caules, fertilizando o espírito da seiva derramada sinuosamente para o oceano.
Sua linguagem fabulosa, com níveis linguísticos encantados, morfologia, sintaxe, signos, semântica, metáforas, revela o misterioso mundo amazônico que poucos percebem, que às vezes destroem, traduzindo a força poética inesgotável desse verde encharcado mundo poético.
Através do poeta a Amazônia se revela e por ela se revela o poeta enraizado, velando por todo esse encanto evolutivo e incessante como no riacho de Tales.
Nessa atitude linguística com a qual a perplexidade transforma a realidade formal, codificada em realidade informal metafórica, expressa por símbolos e representações variadas, o poeta se amazoniza e nos amazoniza, proporcionando uma escuta universal dessa interminável sinfonia verde.
O objeto da poesia, eu penso, não é o objeto, mas a observação do objeto pela lente do poético transformando objetos através dos signos. O poema ultrapassa barreiras, arrebata, arranca, transforma, harmoniza, liberta, independentemente de manuais e condicionamentos funcionais.
Paro por aqui, pois entidades já circundam o prédio, querendo entrar. Pressinto as bênçãos da pajelança e o hálito quente da floresta tropical. Os cantos do Uirapuru, do Araponga e do Cricrió anunciando sua chegada. Ouço o batuque dos povos originários, o clamor dos ribeirinhos, os ritmos eloquentes da região, e farejo o aroma das infusões do fava-tonka, puxuri, priprioca, patchouli e maniçoba, espalhados no recinto acadêmico.
Já vejo a sala enfeitada por cerâmicas marajoaras, tapajônicas, barquinhos de miritis, cuias desenhadas e vitórias-régias que sustentarão os pés descalçados do poeta portando no pescoço um muiraquitã marajoara.
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