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Uma diligência realizada pela Justiça Federal em comunidades ribeirinhas no sudeste do Pará expôs, de forma concreta, os problemas apontados pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre o processo de licenciamento da obra no Pedral do Lourenção, no rio Tocantins. A inspeção, solicitada pelo MPF, revelou fragilidades nos estudos socioambientais e a ausência da Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) às populações locais, um direito garantido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A programação incluiu, na segunda-feira, 29 de setembro, uma audiência pública na Vila Tauiry e visita à comunidade de Praia Alta, em Itupiranga. No dia seguinte, a comitiva percorreu a Vila Saúde, também em Itupiranga, e a comunidade Pimenteira, em Novo Repartimento. Nessas ocasiões, pescadores, quilombolas, quebradeiras de coco e ribeirinhos relataram os riscos da obra para a sobrevivência de suas atividades, além da falta de participação no processo decisório.

Os relatos revelaram como o licenciamento ignora especificidades locais. Ronaldo Barros Macena, presidente da Associação da Comunidade Ribeirinha Extrativista da Vila Tauiry (Acrevita), explicou que a proposta de afastar peixes com vibrações sonoras é equivocada, pois algumas espécies se escondem nas fendas do pedral e outras se aproximam do barulho.

O pescador Josias Pereira de Sousa questionou a proposta do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) de pagar um salário mínimo como compensação. “Dias atrás aí, esse mês atrás agora de setembro, eu tava pescando, eu tenho como comprovar: eu produzi 3 mil e 300 e poucos quilos de mapará. Vendendo ele a R$ 4, fiz R$ 12 mil e poucos. Como é que eu vou me conformar hoje que a pessoa vem me dar uma migalha de um salário mínimo?”, protestou, sendo aplaudido pelos presentes.

Na comunidade Pimenteira, a liderança Maria Eunice Silva detalhou técnicas de pesca que não foram registradas nos estudos oficiais e denunciou os efeitos do tráfego de balsas no rio. “Olha, a gente pesca no canal do rio. Quando passa uma balsa, passa três dias, quatro dias, cinco dias, você pode botar ali que você não pega um peixe. (…) Vai tirar o alimento dos nossos filhos. Porque da onde a gente tira o nosso sustento é do canal do rio, gente. É a nossa pescaria do mapará, a nossa pescaria que a gente pesca, gente, é na caceia, a gente pesca com a nossa linha boiada. Se as balsa passar, elas levam, como já fez isso aqui”, lamentou.

Especialistas também reforçaram os questionamentos. A professora Cristiane Vieira da Cunha, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), criticou o monitoramento feito em apenas quatro meses: “Metodologicamente – e eu trabalho com monitoramento de pesca há mais de dez anos –, metodologicamente a gente não consegue ter um marco zero com quatro meses de monitoramento. É impossível”.

Sua colega, Rosália Furtado Cutrim Souza, da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), completou: “Realmente, em quatro meses não se faz monitoramento. Porque a pesca tem a safra, tem a migração dos peixes e nada é pontual. Nem o peixe, nem o pescador. Os municípios têm limite, mas a pesca não tem limite. O peixe ele fica aqui, ele fica ali, ele é de toda área e o pescador também: onde tem peixe é que vai o pescador (…) E eu já falei isso para o Dnit: que não vai impactar somente lá em cima. Todos os pescadores que fazem uso desse local vão ser impactados”.

Cristiane também apontou falhas no Diagnóstico Socioambiental Participativo (DSAP), já que a maioria dos entrevistados vivia em áreas urbanas, sem relação direta com a pesca. Além disso, destacou que pontos básicos solicitados pelo Ibama, como rotas de pesca, embarcações, espécies e formas de sustento, não foram devidamente respondidos.

O sentimento de exclusão permeou toda a inspeção. Raimunda dos Santos, da comunidade de Cajazeiras, questionou: “Nós não tivemos, pelo menos nós, a consulta prévia. E aí nós queremos saber o porquê que isso aconteceu, porque nós também fazemos parte dessas comunidades”.

Na mesma linha, Mariclea Gomes, de Porto Novo, reforçou: “Nós estamos aqui para dizer ‘por que que nós não estamos inclusos?’. Nós requeremos que seja feita a consulta prévia, livre e formada, para que nós sejamos ouvidos, porque nós existimos.”

O procurador da República Sadi Machado foi enfático ao explicar a diferença entre entrevistas pontuais e a consulta prevista em lei: “A consulta presume que a comunidade possa dizer não. Então é por isso que a comunidade não está sendo consultada. Ela está sendo pesquisada, entrevistada. O Dnit chegou a afirmar numa audiência pública no Senado Federal que bateu um papo com as comunidades. Bater um papo não é consultar”.

A situação foi confirmada pelo pescador Erlan Moraes, da comunidade Praia Alta, que relatou ter participado sozinho de uma reunião apresentada como consulta. “Foi basicamente para mostrar as coisas que a gente sempre vê”. Questionado pelo procurador Rafael Martins da Silva se havia outros moradores presentes, respondeu: “Da comunidade só eu”.

Ao final da inspeção, procuradores avaliaram que a diligência confirmou as teses sustentadas na Ação Civil Pública. Para Rafael Martins da Silva, a visita foi essencial para que o Judiciário constatasse o apagamento das comunidades no licenciamento. “O MPF solicitou para que o Juízo viesse a essas comunidades (…) para que enxergasse aquilo que o MPF já vinha observando desde 2023. Porque o MPF viu que essas comunidades foram apagadas por esse empreendimento, ou seja, elas não foram ouvidas, e as poucas que foram ouvidas não estão tendo o seu modo de vida completamente considerado. Elas vão ser impactadas por esse empreendimento de forma muito grave”, afirmou.

O procurador-chefe no Pará, Felipe de Moura Palha, destacou que as falas das comunidades evidenciaram lacunas graves nos estudos: “A inspeção judicial demonstrou o que o Ministério Público já vinha afirmando há muito tempo: a importância da consulta prévia livre e informada, inclusive para se saber qual seria a dimensão dos impactos nas comunidades. Ficou evidente, a partir das falas das comunidades, que os estudos sobre a pesca, sobre as rotas de pesca, sobre as espécies de peixe, o comportamento dessa atividade, sequer foram realizados”.

O procurador regional Felício Pontes Jr. ressaltou a importância processual da inspeção: “É muito importante que em um processo coletivo o juiz possa ouvir a comunidade que é titular do direito violado. O processo coletivo tem um problema insuperável que é nós do Ministério Público fazemos a ação em nome dessas pessoas, mas elas não estão no processo. Uma forma de fazer com que o juiz possa conhecer essas pessoas é através da inspeção judicial. Isso facilita muito a compreensão do juiz do tamanho do problema que ele tem para julgar e, principalmente, os impactos que as suas decisões podem causar”.

Sadi Machado acrescentou que a meta do MPF é evitar a repetição de erros históricos em grandes obras. “Não há justiça possível nesse processo se não houver consulta prévia, livre e informada às comunidades potencialmente impactadas. Para além da consulta, é preciso que haja também um diagnóstico adequado dos potenciais impactos para que de fato se possa dimensionar quais são os riscos envolvidos. Nós saudamos a posição do Poder Judiciário de se aproximar da comunidade para realizar essa audiência pública e fazer a inspeção judicial, porque de fato é importante que o juiz tenha dimensão clara de quais são os anseios e as demandas da população. Sem isso não há justiça ambiental possível, sem isso não há justiça climática.”

A ação corre na Justiça Federal sob o número 1035924-87.2024.4.01.3900.

Foto: Comunicação/MPF

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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