Publicado em: 17 de julho de 2025
O avanço do fundamentalismo religioso no Brasil é o foco do documentário “Apocalipse nos Trópicos”, da cineasta e roteirista Petra Costa. O filme já está disponível em streaming e aborda questões urgentes e oportunas sobre espaços políticos alinhados ao processo de evangelização das massas no Brasil.
Surreal, distópico, didático e com imagens assustadoras que lembram os exemplares de filmes de horror, “Apocalipse nos Trópicos” remete imediatamente ao item da Constituição Federal sobre Estados, Municípios, União e Distrito Federal e o estabelecimento de cultos religiosos ou igrejas: é vedado embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.
Porém, o que se observa nas últimas décadas é a utilização dos espaços religiosos de acolhimento e sociabilidade como substituição de ações pontuais da sociedade civil, sindicatos, serviço social, associações e grupos culturais pela ocupação gradual e efetiva de uma tendência sócio-política que vislumbra uma sociedade autocrática que remete aos velhos tempos do absolutismo monárquico, sem espaços para discursos das minorias e outras vozes dissonantes; procedimento caro ao valor clássico das sociedades democráticas e plurais.
Nesse sentido, temos como exemplo a expulsão dos espaços identificados com religião de matriz africana por organizações criminosas alinhadas e outros pontos de perda do entendimento do que seria, de fato, o valor da democracia por meio de representantes eleitos, participação cidadã, igualdade de direitos, respeito às minorias e a liberdade de expressão (este último item confundido de forma sistemática na aposta da falta de discernimento, de conhecimento de direitos civis e constitucionais de uma população acrítica).
O documentário de Petra Costa (“Elena”, “Democracia em Vertigem”), com a voz na 1ª pessoa, capta o momento histórico vivido a exemplo de João Moreira Sales, Eduardo Coutinho e outros documentaristas brasileiros que abordam a realidade de forma pessoal e universal. Petra Costa corre os riscos do recorte sobre o tempo presente para avançar na realização de um dos melhores filmes da temporada 2025.
Logo nas primeiras imagens com figuras deformadas entrando num ovo, fragmentos de cinejornais evocam a construção utópica de Brasília para um grande mar aberto que remete à abertura de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, ao som de “Aquarela do Brasil” e coberturas com piscinas e favelas ao fundo.
O documento visual logo avança para o Congresso Nacional, em que lideranças se apropriam da organicidade religiosa fundamentalista na defesa de pautas excludentes e dogmáticas das políticas públicas do momento. Aqui, não há discussão sobre políticas institucionais que podem referendar o mandato eletivo como melhoria da saúde, educação, de novas oportunidades de trabalho na era digital, cultura ou segurança pública. O que se vê é a repetição de pautas medievais e o embotamento viral sobre discussões anacrônicas sobre pauta de costumes.
Não há mais a figura de Jesus Cristo misericordioso e portador de uma visão revolucionária do amor, do entendimento entre os povos e paz na Terra aos homens e mulheres de boa vontade para com o outro, com o próximo. A interpretação da fundamentação bíblica está no livro do Apocalipse, com viés bélico de um cataclisma necessário por meio de guerras e mortes para acelerar o processo de destruição do que está posto, a exemplo da nova ordem teocrática que está em vigor nos Estados Unidos, Israel, Turquia, Hungria, Índia, entre outros países.
A figura do Estado laico desaparece para o decolar de um projeto de mundo orquestrado pela extrema direita de âmbito internacional, que toma de assalto o frágil equilíbrio dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e interfere diretamente nas atividades educacionais, artes, comércio, indústria, entretenimento e a legitimidade e uso do conhecimento científico por meio do Dominionismo (ideologia política que submete a vida pública ao domínio neopentecostal).
O filme é pedagógico ao expor que a aproximação política do fundamentalismo religioso (com ações coordenadas por meio de uma eficiente eminência parda) não se limita à chamada da ultradireita, como também pode ser comprovada nos partidos políticos de esquerda na busca de alianças evangélicas não tão bem-sucedidas. O fato é explícito na entrevista de uma supervisora de limpeza que não vota na esquerda porque seu representante seria supostamente inclinado ao candomblé e sua filha, questionada que se poderia exercer o direito de voto, com a mesma postura, dessa vez com a justificativa de não tolerar o tal banheiro unissex.
“Apocalipse nos Trópicos” é um documentário absolutamente necessário com informações relevantes sobre o uso da fé como ferramenta de manipulação social. Necessário no sentido de compreender como chegamos até aqui, com angústias e medos que acendem o alerta de que o obscurantismo está bem mais próximo do que se possa imaginar e que o regime democrático, mesmo com seu ofício difícil e complicado, pode se perder de forma gradual e de repente, como a imagem emblemática de um vidro estilhaçado.



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