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Quando tinha doze anos, lembro de um colega comparar eu e minhas amigas, em tom de deboche junto a outros colegas meninos, em relação a qual tinha mais celulite. Testemunhar aquela performance me trouxe muita ansiedade. Hoje entendo o que estava em jogo: além de nos colocar em disputa, sob avaliação de olhares masculinos, percebi que cada milímetro do meu corpo poderia ser avaliado e utilizado para minha valorização e, consequente, desqualificação. O interessante é que na época eu sequer tinha celulite, mas comecei a conviver com certo pavor.


Aproximadamente dois anos depois, estava na praia do Murubira, em Mosqueiro, com duas grandes amigas. A brincadeira proposta por uma delas foi que nadássemos e fizéssemos emergir o bumbum, contraindo, e assim avaliaríamos quem tinha mais celulite. Lembro de ter aceitado, receosa, mas me percebia sem opção. E novamente somente hoje compreendo que estávamos reproduzindo um controle social dos nossos corpos, cuja métrica já estava internalizada em nós: não precisávamos de homens para nos avaliar, nós mesmas assumíamos essa “missão”.


Já jovem adulta, estudante de psicologia e frequentando festas de músicas eletrônicas, lembro que havia uma mulher que eu achava muito bonita, com curvas muito bem delineadas e com muitas celulites na coxa e quadril. O corpo dela me capturava. Não apenas por admirar como ela o exibia sem vergonha, mas principalmente porque acendia meus pânicos sobre meu próprio corpo, onde cada buraquinho iria expor minha falta, meu defeito.


Obviamente as cobranças externas persistiram, desde um namorado terminar comigo alegando que engordei uns poucos quilos, seja já recente, quando uma aluna, que gosto e admiro, fez um comentário relacionado a minha idade, me colocando no grupo cuja aparência era de velha. Sem ser uma questão para mim até então, me peguei dias digerindo o comentário com certo espanto e incômodo.


Apesar de conviver em um grupo cujas mulheres de quarenta, são tranquilas com sua idade e vivem sem restrições ou neuras, o consultório tem me mostrado o quanto não é simples para mulheres o título dos quarenta +. A ideia de prazo de validade, ser desqualificada, comparada ou preterida em relação as mais novas; as cobranças e tantos outros afins.


O discurso do “envelheça bem” captura rios de dinheiros em cremes, ácidos, protetores, academias, comidas, botox, preenchimentos, plásticas. Tudo fazendo parte de uma rotina que é misturada com a ideia de saúde e autocuidado, do tal de amor-próprio.


O fato é que o sofrimento psíquico de mulheres por conta do corpo e idade é uma realidade para praticamente todas nós, mesmo as estudiosas de gênero e/ou feministas. E como mostrei ao narrar uns poucos fatos da minha história, estas narrativas/discursividades/sofrimentos vão se instalando desde que somos pequenas e se permanece durante todo nosso desenvolvimento, inclusive ao decorrer da vida adulta ou da velhice.


Ter uma alimentação saudável, tempo ao esporte e acesso a procedimentos estéticos é uma questão de privilégios. Não é para todas e, aqui, até deixo o questionamento se é realmente necessário ou se precisa ser uma necessidade, um imperativo. Falo isso porque o discurso meritocrático de que a beleza é uma escolha responsável de cada uma, apaga as desigualdades sociais, raciais e de gênero, como por exemplo o excesso de trabalho que nos assola, dadas ao sacrifício de si em nome do cuidado com os/as demais, como na maternidade.


Nesse balaio, as intervenções cirúrgicas crescem, assim como as “substâncias” das quais nos tornamos reféns, cúmplices e dependentes. Por exemplo, lembro de uma amiga trans que após usar silicone industrial, seu corpo teve rejeição e gangrenou, condenando à morte. Sim, as substâncias podem nos levar à morte. E, cada vez mais, em nome do reconhecimento social (e de suprir nossos vazios) usamos substâncias, líticas ou ilícitas.


É sobre isso que o filme “substância” de Coralie Fargeat abarca. Esta cineasta que já rompe com os protótipos do feminino de passividade, ao produzir um terror gore, inicia sua narrativa retratando o sintoma contemporâneo de perfeição produzido pela sociedade do espetáculo que hipersexualiza e objetifica mulheres e seus corpos em relação a um padrão de beleza, mercadológico e utilitário, e que nos coloca em um lugar efêmero e descartável, produtor de inúmeros sofrimentos psíquicos (até “enlouquecedores”).


Logo, o filme se desdobra a apontar os efeitos psicossociais para mulheres e como a indústria pode descartar e expurgar mulheres, independentemente de seu talento, competência e currículo profissional, assim como se apropriar da insatisfação feminina como um mercado, especialmente em relação ao avançar da idade.


Não à toa, a diretora elege Demi Moore como protagonista, que além de atuar brilhantemente bem, sua presença demonstra uma relação entre ficção e realidade, as quais parecem se amalgamar, comprovando que o filme transborda a fantasia, uma vez que a atriz sofreu um processo de apagamento midiático ao decorrer do avançar de sua idade, tendo descartado seus méritos, talento e trajetória profissional.


Os estudos decoloniais nos mostram como o sistema capital se sustenta em binarismos, sendo talvez o mais fundamental a dicotomia entre humanos e não humanos. Nessa linha de pensamento, pensar na juventude versus velhice (mais próximos dos não humanos, descartáveis ou peso morto) é uma via interessante para constatar a produção de efeitos sobre modos de subjetivação, ideias e sofrimentos.
Diferente de povos não ocidentais e hegemônicos, cuja velhice é sinônimo de sabedoria, para nós envelhecer é deixar de participar de um sistema econômico e de produção, inclusive reprodutivo. Em outras palavras, a juventude representa um ideário de sucesso, atividade, potência, ao passo que associamos a velhice ao seu oposto. Corpos não úteis, corpos descartáveis, corpos infantilizados; corpos que são um estorvo.


O modelo ideal de juventude, associado a produção e eficiência que são símbolos do sucesso no sistema capital, também chega aos homens, mas o filme retrata o quão é mais fortemente exigido às mulheres e nos faz pensar na necessidade de refletir sobre bioética e limites do capital, que não se cansa em produzir experimentos e cobaias para lucrar com as necessidades que ele próprio cria. O sistema lucra com insatisfação feminina e com a violência contra as mulheres.
Negar a velhice acaba sendo um efeito da mercantização dos corpos, mas sobretudo uma forma de sobrevivência social e coletiva, tal como um recurso psíquico de negação. E para que matar marcas e/ou traços de velhices em nós? Que luta travamos nas nossas próprias cisões internas? Como uma parte de nós pode destruir a outra?


Assim, aciono alguns questionamentos: O que briga em nós e por quê? Que experimento nos tornamos nessa lógica racializada capital patriarcal? Quando nos sentimos deformadas ou inadequadas? Que preço estamos dispostas a pagar? A que estamos dispostas a nos submeter? Quem se importa com nosso sofrimento? Quem são os monstros?


Pensando em um sistema que produz sobrecarga materna e rivalidade e disputa feminina, inclusive entre mães e filhas, acredito que o filme nos leva a lugares interessantes para reflexões.


Mães que dedicam algo de sua vitalidade e tempo de investimento pessoal para cuidar das filhas e que tem nelas uma extensão narcísica de si, se deparam com os efeitos que se desdobram quando se renuncia a si mesma – quando não se goza da liberdade para poder não renunciar. Neste sentido, cabe pensar no sistema capital que vivemos e que faz com que mães se vejam sem amparo para educação infantil, responsabilidade que é travestida de instinto materno, mas que poderia e deveria ser distribuída pelo coletivo e com ações de apoio estatal. Contudo, no formato que vivemos, mulheres acabam muito cansadas e sobrecarregadas, renunciando a sua saúde mental e física para garantir o sucesso e desenvolvimento de suas crianças – No filme, as cenas podem ser pensadas quando a versão mais nova causa o envelhecimento da versão mais velha, por lhe roubar dias.


Porém esta extensão narcísica, que a Psicanálise desenvolve tão bem ao explanar sobre a negação da finitude, desejo de proteção encarnado no bebê (a criação) também parece encontrar complexidade em relação ao feminino, fato que psicanaliticamente irá envolver a complexa relação, passional, entre mães e filhas.


Aqui, abordo o fenômeno cultural que bordeia essas relações pela discursividade que produz rivalidade feminina como natural, como se fosse parte da essência psíquica de mulheres. Assim, nesta cultura que promove a rivalidade é colocado às mães a ideia de substituição, posto que agora o sucesso da juventude da filha está na constatação do fim de seu próprio “prazo de validade”, isto é, de seu decaimento social. Esta ideia se ampara no fato de como no filme é repetida que a versão jovem da protagonista é referida como a sua “melhor versão”, “sua parte aperfeiçoada”, e, ainda assim, sendo as duas únicas, imagem e semelhança.


O lugar para mulheres está sempre em comparação, em que a matriz (mãe) irá sempre estar em desvantagem frente sua própria criação. Lembro do discurso de mulheres mais velhas dizendo a falta que sentiam ao serem assediadas na rua, como se fosse um privilégio da juventude.
O que está por trás deste discurso? Que sofrimento mulheres mais velhas são relegadas ao serem descartadas? Como a necessidade de valorização, faz com que mulheres não reflitam e até desejem comportamentos violentos contra si? Esta realidade faz com que muitas tenham seus próprios companheiros assediando suas filhas e precisando se preocupar com um futuro casamento que não coloque suas crianças em risco.


Apesar de ser uma luta inútil, posto que a criação jamais assumirá lugar da matriz e vice-versa, o que se estabelece é uma disputa de rivalidades e sofrimentos psíquicos em que ninguém ganha, ambas são aprisionadas no sofrimento do feminino cultural, cuja validação está em ser reconhecida pelos olhares alheios enquanto objeto de desejo, lido por elas como lugar de sujeito, embora seja um processo de assujeitameto e segregação.


E é essa rivalidade que coloca mulheres novas e mais velhas a uma disputa por algo que sequer tem nomeação, mas que desagrega movimento político e possível para mulheres e fortalece o capital, dando poder aos seus principais e atuais representantes: homens poderosos, brancos e ricos. Ou seja, nessa rivalidade nenhuma mulher lucra ou vence, elas estão fadadas a destruição.


Mas para além disso, supondo que a briga entre juventude e velhice fazem parte da mesma pessoa (um dualismo, uma cisão), não entre mães e filhas, me pergunto: que brigas internas mulheres precisam travar apagando seus sinais de maturidade, a fim de manterem vivas a parte infantil, tão valorizadas por homens? Esta briga que extrapola o corpo físico, faz com que mulheres permaneçam ou encarnando como positivo o lugar de objetificação sexual ou performando o local de passividade, inocência, necessidade de proteção – fato que nos faz pensar e interrogar um país cuja número de violências sexuais ocorrem de forma exponencial com meninas até 13 anos e que produz filmes pornográficos com adultas vestidas de colegiais, corroborando com uma cultura do estupro pouco refletida. Por outro lado, faz com que mulheres que rompam com essa lógica sofram sanções, sendo a solidão uma destas penas. São as ditas “mulheres difíceis”.


Por isso, na narrativa nenhum homem aparece de uma forma que não seja grotesca. Há pelo menos cinco representações masculinas:


1) O diretor do programa, que Coralie Fargeat nos faz sentir a repugnância a partir de suas estratégias de filmagem, demonstrando o quanto há pouca ética do cuidado, de regras de convívio social e de boas maneiras, devido próprio heterocentramento comum a homens de poder, que supostamente tudo podem e pouco se importam com entorno ou são avaliados por hábitos (diferente para mulheres, como a protagonista, mesmo que mesmo dentro do padrão de beleza e competente, passa a ser desvalidada como um produto velho)


2) O amigo de infância que se sente autorizado a paquerar uma mulher de sucesso, apesar de sua insignificância e beleza mediana (diante do padrão de beleza), demonstrando a autoestima do homem hétero que está sempre disposta a assediar e não tem grandes contenções.


3) O vizinho que também se sentia autorizado a destratar a versão mais velha da personagem e assediar a mais jovem.


4) O grupo de empresários que objetifica a atriz nova, com olhares assediosos de quem olha um prato de comida. E algumas figuras que sequer conseguem ver seu choro ou perda de dente, uma vez que não olham para ela enquanto sujeito, sequer prestando atenção em sua existência.


5) O ficante da atriz que em outro momento se depara com a versão mais velha e grita, violentamente, para que ela saia da frente, denotando como mesmos homens que são eleitos por mulheres como pares românticos, são aqueles capazes de violentar e que, facilmente mudando de contexto, violentam mulheres.

Desta forma, com estes homens grotescos, a diretora demonstra como ocorrem as relações de gênero em uma sociedade dirigida por masculinidades hegemônicas na égide patriarcal, comumente misógina. Violentadas, tratadas como objetos, “aproveitadas”, descartáveis.


Ao final do filme, evoluindo suas reflexões pela via do excesso, até as últimas consequências, com cenas de terror gore, de extrema violência corporal, a direção nos faz sentir nojo, incômodo durante a própria experiência de assistir ao filme (eu cheguei a tapar os olhos com as mãos). Estas sensações extrapolam por vezes nos fazendo pensar que o filme já deveria acabar e questionar seu prolongamento.
Contudo, nada é sem propósito e, a meu ver, há um objetivo muito bem definido que só a arte encarna tão bem, ao nos fazer sentir na própria experiência, no corpo ou nos afetos provocados: o da reflexão pelos sentidos. Há uma mensagem nessa opção de método cinematográfico: a violência contra nossos corpos nunca acaba. Ela se alonga, ultrapassa limites, nos desmantela, esquarteja. Pode não ter fim. E é por isso que filme cumpre sua função: inquietar e causar.


Se em certo momento o excesso de violência se torna risível e, em outros, questionamos por que ela se mantém na relação abusiva que ela própria poderia pôr fim, esse seria um próprio retrato da violência contra as mulheres em nosso país. E não seria isso que acontece conosco diante da violência contra as mulheres? Não é assim que nos julgam? Rindo, culpando ou nos responsabilizando, ignorando todo um sistema e projeto social.


As cenas que trouxe da minha história denotam como há reiteradas discursividades que nos empurram a certa normatividade, no qual qualquer rompimento nos torna abjetas. A velhice seria um grande medo para nós mulheres. Nosso corpo, com tantas cisões e marcas registradas, é um corpo matéria, mas também simbólico, que carrega todas essas violências. Aliás, como ficamos internamente, mesmo com esta roupagem produzida nas cirurgias estéticas? Quantos pontos escondidos e remendos carregamos?
Nesse cis-tema (hetoronormativo, etarista, patriarcal, racista, especista), como diz Paul apreciado: há “monstros”. E que quando despedaçados, penso eu ao assistir ao filme: pouco importam. Como habitarmos esse território-corpo sem tanto expurgo? Eis uma das questões.

Bárbara Sordi
Psicóloga, Psicanalista, Especialista em Psicologia Hospitalar da Saúde, Facilitadora de Círculos de Paz, Professora da Universidade da Amazônia, coordenadora do Projeto “Sobre-viver às violências” e do Grupo de estudos “Relações de gênero, Feminismos e Violências”, Mestre e Doutora em Psicologia pela Ufpa e coordenadora/assessora da Vereadora Lívia Duarte. Mãe da Luísa e Caetano, Feminista Terceiro Mundista.

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